Uma Concepção Fenomenológica de Tecnologia
Para evitarmos um pragmatismo sujeito a flutuações da moda, é importante o desenvolvimento de concepções teóricas coerentes que fundamentem o uso dessas tecnologias nas nossas escolas. Porém a teorização deve ser continuamente enriquecida pela prática (e vice-versa), para não cairmos no discurso acadêmico de quem não tem vivência do objeto nem na descrença daqueles que tem experiência mas não renovam suas concepções pragmáticas. No campo desta nova tecnologia educativa não vejo utilidade para concepções polarizadoras. O modo comum de encará-la como redentora da humanidade ou como um mal necessário em nada ajuda.
Como base para um modelo viável, venho explorando a utilidade de partes do trabalho de Don Ihde (1979), numa perspectiva das filosofias da práxis. Baseando-se em Heidegger, Ihde faz uma análise fenomenológica do uso humano de ferramentas (denominada por ele de filosofia da instrumentação), a qual estou tentando aplicar aos instrumentos eletrônicos de manipulação do conhecimento usados nas escolas.
A Fenomenologia tenta abordar os objetos do conhecimento tais como aparecem, isto é, tais como "se apresentam" à consciência de quem procura conhecê-los, tentando deixar de lado toda e qualquer pressuposição sobre a natureza desses objetos (Heidegger, 1996; Rezende, 1993; Chauí, 1995), Um dos primeiros passos neste sentido é tentar rever a experiência psicológica do óbvio, do cotidiano, cujo conhecimento é embotado pela familiaridade. Tal abordagem, embora pareça fácil, torna-se difícil pela enorme complexidade da experiência humana. Como diz um ditado, o peixe é o último a descobrir a água.
Segundo Ihde, nossa experiência da realidade é transformada quando usamos instrumentos {Ser Humano à (máquina) à Mundo}. Através do instrumento há uma seleção de determinados aspectos da realidade, com ampliação e redução de outros. A amplificação é o aspecto mais saliente e pode nos deixar impressionados, maravilhados, ao passarmos a experimentar coisas que não faziam parte da nossa experiência anterior, com nossos sentidos nus. A redução, ao contrário, é recessiva e pode passar despercebida, alienando o usuário do instrumento.
Em parte devido à novidade e ao aspecto dramático, parece ser difícil, para alguns adultos, como também para crianças em desenvolvimento intelectual e emocional (construindo representações fundamentais do mundo), fazer distinções claras entre ser humano e computador, antropomorfizando a máquina (algo que crianças pequenas fazem normalmente ao lidar com objetos bem menos reativos ou interativos). Para isto deve haver uma contribuição não desprezível da linguagem associada com Informática, vulgarizada pela ciência e pela mídia, cheia de termos e expressões como inteligência artificial, tutor ou professor eletrônico, agente inteligente, computadores infectados por vírus, vacinas, realidade virtual, voz sintetizada, "mandar" o computador fazer isso ou aquilo, o computador errou (ou não erra), horóscopo por computador, comandado por computadores, etc. Tal linguagem esconde o fato que por trás de qualquer ação da máquina existem ações humanas individuais ou coletivas, extremamente complexas, imediatas ou não.
Assim, a conclusão de uma primeira análise fenomenológica superficial é que a tecnologia não é neutra, no sentido de que seu uso proporciona novos conhecimentos do objeto, transformando, pela mediação, a experiência intelectual e afetiva do usuário; possibilitando interferir, manipular, agir mental e ou fisicamente, sob novas formas, pelo acesso a aspectos até então desconhecidos do objeto.
Dependendo do objeto, do sujeito (mais ou menos crítico), de sua história e da situação especifica (epistêmica), pode-se cair no exagero de considerar as novas características ampliadas do objeto (geralmente aspectos micro ou macro) como mais reais do que aquelas que aparecem, que são conhecidas sem a ajuda de instrumentos. Pode-se, assim, confundir as duas dimensões de continuidade (em essência o mesmo objeto) e diferença (conhecido parcialmente de outro modo) entre a percepção ordinária e aquela mediada pelo instrumento. Neste sentido, as realidades possibilitadas pelas novas tecnologias da informação podem ser alienantes, como nos relatos dos viciados em computadores.
Usemos uma analogia simples: para quem nunca fez longas viagens por terra, o avião deforma, aliena a experiência individual de distância (entre países e cidades) e de todos os outros aspectos contextuais associados (paisagens, climas, topografias, características de outros meios de transporte, condições econômicas e sociais do percurso, etc.).
Vejamos o exemplo do computador como instrumento de comunicação pela Internet (quando se usam programas tipo chat). A realidade selecionada é basicamente aquela da expressão escrita textual e eventualmente de algum material gráfico, produzidos pelos que se comunicam. Há ampliação da comunicação linear simultânea e da possibilidade do registro das trocas (memória eletrônica). A distância torna-se irrelevante, havendo redução do tempo de comunicação, dos aspectos não verbais da comunicação, do contexto da realidade concreta da interação face a face (entre outros). Uma análise fenomenológica mais detalhada mostraria muitos outros elementos, ampliados e reduzidos: facilidade de construção de respostas mais "pensadas", alterando a contingência do tempo de reação à fala do interlocutor; ausência do parceiro (ou parceiros simultâneos) no espaço pessoal de quem se comunica ou de quem recebe (todos estão nos seus espaços, "em casa", sem invasões e sem espaços "neutros"; segurança pessoal, possibilidade de interrupção brusca do diálogo ou de saída de uma dupla para outro espaço virtual; desconhecimento do espaço físico do interlocutor, ausência de cheiros e assim por diante.
Em tais contextos é comum as pessoas esconderem do interlocutor ou alterarem aspectos pessoais como idade, aparência, situação social, idealizando, ao mesmo tempo, outros aspectos do parceiro conhecido apenas através do computador e de elementos contextuais muito limitados. Há também alteração do peso dos talentos pessoais: algumas pessoas se comunicam melhor por escrito do que oralmente. Outras, com dificuldades de relações humanas, consideram o instrumento eletrônico um meio de comunicação mais gratificante.
Outro aspecto não desprezível é o caráter inicial dramático da realidade mediada pela nova tecnologia. Nos primeiros anos do cinema, por exemplo, as platéias em salas escuras tinham medo de cenas de trens que se aproximavam do espectador (confusão entre percepção ordinária e mediada). Atualmente a TV ainda goza do charme dramático da novidade, ao realçar formas e alterar perspectivas de rostos e de outros detalhes corporais; ao criar efeitos e modificar objetos e contextos televisionados, mostrando-os repetidamente, descobrindo ou inventando novas realidades.
A mídia, a ficção - e mesmo alguns cientistas com formação humanista limitada - tem exagerado, há décadas, os aspectos dramáticos dos computadores, considerando-os máquinas "pensantes", dotadas de inteligência artificial. Um fenômeno interessante foi a extensa cobertura pela mídia, em 1996 e 1997, dos jogos entre o campeão mundial Garry Kasparov e o computador Deep Blue da IBM. Há tempo que computadores ganham das pessoas comuns, em jogos de xadrez, sem se fazer nenhum alarde. O xadrez é um jogo lógico que exige cálculos complexos rápidos, para se decidir sobre próximas jogadas, com base em jogadas passadas. Isto é algo que máquinas computacionais tem de sobra: memória lógica e capacidade de cálculo; em quantidade, rapidez e precisão bem maiores que o cérebro humano.
Usando uma analogia, ninguém de bom senso mede forças nem sente-se inferiorizado por um guindaste que levanta dezenas de milhares de quilos, não havendo comparação com a capacidade muscular humana. Ninguém desafia tais máquinas, como foi o caso do enxadrista russo com o supercomputador da IBM. Diferentemente da inteligência, também não se fala em "força artificial".
Neste incidente, parece-me que se caminha para uma situação de bom senso. Como no caso de guindastes, Gasparov percebeu que, em vez de lutar contra máquinas, a atitude mais inteligente é usá-las como extensão humana. Numa nova época do xadrez, ele e o campeão búlgaro Topalov se enfrentarão, contando ambos com a ajuda do software "Chessmaster 5500" durante os jogos em junho de 1998 na Espanha. Ainda assim, o efeito dramático aparece na mídia e nas declarações do jogador. Segundo uma revista semanal (Época, 1º de junho 1998, p.66), o russo declarou: "Vamos ver um exemplo do xadrez do século XXI: a perfeita simbiose entre o homem e a máquina" (analogamente, sem o efeito dramático, ninguém hoje refere-se "à perfeita simbiose entre maquinistas e poderosos guindastes portuários").
As máquinas baseadas na Informática são extremamente repetitivas, por mais inteligentes ou criativas que pareçam. Sempre existem, subjacentes, algoritmos matemáticos que controlam desempenhos de tarefas específicas. A ilusão de poder decisório, no sentido humano, é produto da operacionalização de conceitos matemáticos sofisticados, pouco acessíveis à pessoa comum. Eu não consigo sequer aceitar que tais máquinas sejam "burras", porque este conceito supõe atividade biológica inteligente, mesmo limitada.
Neste sentido, Wallich (1997), comentando um livro que examina a concepção de computadores disseminada pelo filme "2001" há trinta anos atrás, comenta que muitos aspectos do cotidiano imaginado no filme de Stanley Kulbrick perderam-se de vista no horizonte tecnológico, não sendo mais surpresa que mesmo os talentos mais básicos do computador Hal 9000 (personagem principal do filme) - como por exemplo manter uma conversa simples com uma pessoa - estão muito além dos computadores modernos: "...Eles não conseguem sequer converter sons, de modo confiável, numa representação interna de significado; não conseguem nem mesmo gerar uma fala com entonação natural. As máquinas ainda carecem da enorme base de conhecimento implícito sobre o mundo e de compreensões intuitivas de emoção ou crença que a maioria das pessoas considera como algo dado" (p.96).
Voltando à Educação, as tecnologias educacionais tem ampliado formas convencionais de atuação de professores. Rádio, cinema e televisão ampliavam a capacidade expositiva do professor, reduzindo a interação entre mestre e estudante. Havia enorme redução da presença do aprendiz na nova realidade do ensino à distância, tornando-o impessoal. O aluno tendia a tornar-se mais passivo e a ser considerado uma estatística, praticamente desaparecendo a relação humana com o professor, apesar dos artifícios de se usar monitores em salas de telecurso, de se incentivar o uso do correio físico e de outras formas mediadas de comunicação.
Além de ampliar os sentidos, condicionando a experiência da realidade, as tecnologias do passado ampliavam a força humana, a capacidade de agir fisicamente na realidade concreta. Com as tecnologias da informática, amplificam-se aspectos da capacidade de ação intelectual.
Talvez este aspecto explique em parte o mito - disseminado no início dos anos oitenta com a linguagem LOGO (Papert, 1985) e desde então reforçado pela mídia - que computadores desenvolvem a inteligência das crianças, apesar das pesquisas sérias não corroborarem tal coisa. O fato de "inteligência" ser um conceito amplo, uma realidade construída, não visível, um terreno fértil para interpretações enganosas, torna-se fácil disseminar a crença na sua ampliação pelo uso de instrumentos (diferentemente do que ocorre com ampliações da força física).
Segundo Jean Piaget, não pensamos para agir. O pensamento já é uma forma de ação. Quando pensamos, usamos símbolos no lugar de objetos concretos e operações mentais no lugar de mãos, pés, ferramentas físicas. Entre outras vantagens adaptativas, isto nos liberta da matéria (peso, densidade, etc.), do tempo e do espaço físico, tornando-nos muito mais poderosos na interação com outros seres, com o ambiente. Ajudados por computadores, podemos ampliar nossa capacidade de construir e manipular símbolos, historicamente limitada pelo nosso pequeno cérebro, com o apoio de lápis, pincéis, papel e outras tecnologias mecânicas relativamente toscas. Podemos agora construir e armazenar eletronicamente enormes quantidades de objetos abstratos, relacioná-los, acessar tais memórias de modo extremamente rápido e organizado, amplificar a capacidade de calcular, em suma, agir simbolicamente com objetos de enorme complexidade física e lógico-matemática, em espaços e tempos virtuais.
Estas formas de ampliação, repetimos, longe de serem neutras, são dramáticas. Produzem espanto e sentimentos confusos (por serem realidades novas para nós) e tendem a gerar desequilíbrios na interação entre ser humano e realidade física, social, etc., uma vez que as formas anteriores de interação foram historicamente construídas em contextos diferentes de equilíbrio de forças.
Parafraseando um poema-música de Caetano Veloso, novas relações de força possibilitam construir e destruir coisas belas, sendo necessário algum tempo, muito erro e muita experiência para o desenvolvimento de novos equilíbrios. A nascente história das tecnologias da informação já nos mostra que poderosas formas de manipulação de dados tem alterado o conhecimento e a forma de realidades físicas, sociais, cognitivas, culturais, econômicas, possibilitando ações tanto benéficas como negativas.
Por exemplo, a globalização das economias, através de computadores e das tele-comunicações, ampliou oportunidades para novos negócios e empregos. Por outro lado, pela velocidade de tais transformações, os países em desenvolvimento, mais fracos, estão sendo vitimados pela incapacidade de competir com economias maduras e bem organizadas. Pela facilidade de transferência de grandes volumes de capitais, são vulnerais à especulação financeira internacional, como ficou patente com a recente crise das bolsas.
A educação ainda não sofreu muito tal impacto, uma vez que as tecnologias da informação não foram desenvolvidas para lidar com as realidades dos sistemas educacionais. Mas o uso relativamente incipiente das TI na educação nos permite entrever a repetição da história.
Voltando à análise das relações entre o real e o virtual em educação, façamos um esforço de reexame do óbvio, no espírito da Fenomenologia, sob a ótica de um hipotético professor de Geografia trabalhando com conceitos de espaço, inicialmente de forma descritiva, aparentemente mais simples. O que as tecnologias selecionam, amplificam, reduzem, no processo de conhecimento, pelo aprendiz, de representações de um determinado espaço e tempo?
Partiremos do pressuposto que, para um ensino de qualidade, é necessário constantemente tentar assumir a perspectiva do aprendiz.
Um ponto de referência do professor poderá ser a experiência do próprio espaço e das diferenças em relação ao aprendiz; dos espaços mais conhecidos de cada um e que servem de referências individuais. Essa deve ser a concepção fundamental de espaço, porque a mais natural, feita sem ajuda de instrumentos e no contexto da qual o ser humano evoluiu sua inteligência, inicialmente espaços limitados pela capacidade de mobilidade humana. A partir do seu espaço o aprendiz poderá imaginar e aprender sobre outros espaços, também conhecidos dele ou dela através de deslocamentos habituais, que fazem o cotidiano de cada um.
A partir do espaço real, poderemos imaginar experiências virtuais dos espaços fundamentais, que possam ser cotejadas com experiências físicas pessoais: um mapa de seu bairro ou de sua cidade, do país, das fotos (tradicionais ou digitalizadas na Internet), ou de fotos ou descrições verbais constantes de catálogos de agências de viagem ou de órgãos das cidades que exploram o turismo.
Noutro estágio, o conhecimento focado pela mídia, de espaços no tempo passado próximo. Com esta expressão me refiro aos tempos e espaços que estão na memória da comunidade, da coletividade, devido a acontecimentos extraordinários. Por exemplo, no tempo em que escrevo estas linhas (abril de 1998), os espaços da copa do mundo na França; do fenômeno meteorológico El Niño, relacionados com a seca e a fome no sertão nordestino. Tais espaços, num pequeno período de tempo (meses), tem sido mostrados e comentados repetidamente na televisão, em revistas e jornais, comentados entre pessoas. Alguns em todo o planeta, outros regionalmente. A indústria da propaganda de cada local tem feito promoções de viagens, camisas, bonés, diversas modas aplicadas a objetos do cotidiano, especialmente o vestuário.
A TV tem mostrado a França focando as cidades onde serão realizados os jogos. Sempre aparecem alguns marcos conhecidos (a Torre Eiffel, enorme nos anúncios). Os materiais gráficos de promoção do turismo são sempre a cores, em papel brilhante e não mostram poluição no ar nem nas ruas. Os prédios são limpos e as perspectivas são deformadas, pelas lentes das cameras, para realçar pontos turísticos, comerciais e históricos.
Os países do hemisfério Norte não são mostrados no ciclo das quatro estações. Em tais documentos geralmente é verão ou primavera, quando ocorre o maior fluxo de turistas. Excepcionalmente mostram-se cenas de inverno, quando ocorrem esportes desta estação. Neste caso mostram-se locais montanhosos. As exceções são os tempos quando ocorrem acontecimentos extraordinários, climáticos, naturais, artificiais - enchentes, tempestades de neve, furacões, acidentes aéreos.
Aqui cabe uma observação para o professor de Geografia: como ensinar virtualmente, mas de modo crítico, sobre tais lugares, se ele ou ela não tiver a experiência primeira, (in loco ou em locais parecidos), o conhecimento concreto de tais tempos e espaços? Caberão sempre reflexões sobre a natureza do espaço virtual, por mais que ele seja uma cópia do espaço real (ver Lévy, 1996). Ele poderá até ser muito útil, particularmente em atividades de análise, de síntese, de generalização, de re-exame do que for aprendido a partir de referências a espaços reais, sempre que possível. Não ocorrem no mesmo tempo (são artificiais, como nos diz Milton Campos (1997). Os instrumentos usados na sua construção, especialmente as cameras e os atores de edição, não se deslocam nas mesmas perspectivas tridimensionais, locais e ritmos do aprendiz e não capta as mudanças associadas de período e ritmo do dia ou noite. Em certo sentido, são comuns experiências virtuais de percepção ubíqua, algo hoje corriqueiro com a TV - como em uma imagem secionada mostrando duas pessoas ao telefone em lugares diferentes do planeta -, algo até pouco tempo domínio da ficção.
Tais reflexões devem ser feitas em relação não apenas à Geografia, mas praticamente em qualquer situação educacional que envolva o trabalho com virtualidades. Novamente, cabe enfatizar, tais situações de ensino exigirão sempre criatividade, experimentação, adaptação a cada situação nova, a cada grupo de alunos, a cada tipo de material, nos remetendo, inexoravelmente, à complexidade do ato de ensinar e de educar, que se tornam bem mais delicados com a presença das sofisticadas tecnologias da informação, como já ocorre noutras áreas como a medicina, o comércio e a indústria. Em vez de substituídos pela máquina, haverá necessidade de mestres bem mais preparados, mais sensíveis, cada vez mais cidadãos do mundo, mas principalmente cidadãos do bairro, da cultura, dos espaços e tempos do aluno ou aluna (comparar com Cysneiros, 1998).
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