"O DESCOBRIMENTO DO BRASIL"
APERTADOS, COM MANTIMENTOS ESCASSOS E MAL CONSERVADOS, OS MARINHEIROS ENFRENTAM VIAGENS LONGAS E DIFÍCEIS
A vida nos navios que partem para alto-mar é muito dura. Oficiais e marinheiros espremem-se em espaços exíguos, enfrentam os perigos dos mares desconhecidos e padecem de doenças terríveis. A principal causa de mortalidade, além dos naufrágios, é o mal das gengivas, um flagelo das tripulações. Depois de algumas semanas no mar, as gengivas incham e começam a apodrecer, exalando um odor insuportável. Às vezes, é preciso cortar a carne apodrecida antes que o inchaço cubra os dentes e leve o doente à morte – sem conseguir mastigar, os infelizes definham de fome. A tripulação se ressente da falta de alimentos frescos. Os oficiais têm permissão para embarcar animais vivos, como galinhas, cabritos e porcos, mas essa carga geralmente é consumida nos primeiros dias de viagem. A partir daí, a principal comida a bordo são os biscoitos da regra, feitos de farinha de trigo e centeio. Cada tripulante tem direito geralmente a 400 gramas diários de biscoito, a ração básica de sobrevivência no mar.
A má conservação dos alimentos é um problema grave. Armazenada em paióis pouco arejados, quentes e úmidos, a comida apodrece rapidamente. Os navios vivem infestados de ratos, baratas e carunchos. Insetos e vermes disputam com os homens o alimento escasso e comprometem as já precárias condições de higiene. Os temperos fortes são usados para disfarçar o gosto dos alimentos deteriorados. Peixes frescos são uma raridade – além de difíceis de pescar em alto-mar, a tripulação prefere não gastar o pouco alimento disponível como isca de resultados incertos. As refeições são preparadas num fogão a lenha existente no convés e cuidadosamente vigiado para evitar incêndios. À noite e durante as borrascas, os fogões ficam apagados. A água, transportada em grandes tonéis, também apodrece pelo acúmulo de algas e parasitas. Quando ela escasseia, nas longas viagens, o racionamento aumenta e cozinha-se com água do mar. Talvez venham daí as febres e diarréias que atormentam a todos. Essas doenças não só minam o corpo como entorpecem a mente. Suspeita-se que uma diarréia intermitente tenha contribuído para os delírios do grande almirante Cristóvão Colombo, que ultimamente deu até para duvidar que o mundo é redondo, atribuindo-lhe, ao contrário, o formato de uma "teta de mulher", conforme escreveu em arrebatada carta enviada à piedosíssima rainha Isabel de Castela.
Os navios funcionam como organizações militares, com hierarquia e tarefas bem definidas, o que não tem impedido motins e rebeliões. Não é só a marujada ignara que se subleva nos momentos de desespero. Na viagem de volta das Índias, a tripulação da frota de Vasco da Gama estava tão devastada pelas doenças e pela exaustão que até os mestres e pilotos pediram ao almirante que retornasse à terra (numa reação típica de seu temperamento irascível, Gama prendeu os pilotos e assumiu ele mesmo o comando da navegação). A elite da tripulação é composta de representantes da nobreza e profissionais altamente especializados na arte de navegar. O posto mais alto é o do capitão-mor. Depois vêm o mestre e o contramestre, responsáveis pela contratação dos marujos e pela rotina de bordo. O piloto é o comandante das operações náuticas. Deve conhecer a posição do navio o tempo todo, definir seu curso, saber ir e retornar em segurança. O escrivão, representante direto da coroa, encarrega-se de fazer os relatos da viagem e os registros no livro de contabilidade. Agora, com a expansão da empresa das navegações, já começam a ser sistematicamente embarcados os representantes da Igreja. Eles prestam assistência espiritual à tripulação e viajam imbuídos da missão de propagar os ensinamentos cristãos entre os bárbaros e infiéis das novas terras, tarefa na qual até agora têm obtido pouco sucesso.
O restante da tripulação é dividido em três categorias. Os marinheiros são profissionais do mar com experiência em viagens anteriores. Nesse grupo estão os carpinteiros, calafates, tanoeiros, meirinhos, despenseiros, cozinheiros e bombardeiros. Os grumetes são aprendizes de marinheiros, novatos de primeira viagem. Aprendem a içar e recolher as velas, operar as bombas para drenar o navio e outras rotinas náuticas. Os que mostram aptidão são promovidos a marinheiros. Por fim, há os pajens, menores embarcados que servem os oficiais de bordo. Limpam as cabines, arrumam a mesa, servem as refeições e cantam hinos religiosos. Também cabe aos pajens virar a cada meia hora a ampulheta, o relógio de areia que marca as jornadas de trabalho a bordo e o progresso do navio durante a viagem. Os navios levam ainda a gente de guerra, os soldados equipados com os canhões que tanto efeito causam no além-mar.
Só os oficiais têm aposentos próprios. A maioria da tripulação vive esparramada pelo convés e dorme em lugares improvisados. Expostos ao sol, ao frio e à chuva, muitos marinheiros morrem de doenças pulmonares. Não há banheiros. As necessidades são feitas diretamente no mar, com a ajuda de pequenos assentos pendurados sobre a amurada. O uso de urinóis à noite e durante as tempestades aumenta a pestilência a bordo. O responsável pelos raros cuidados com a higiene da tripulação é o barbeiro. Seu estojo é composto de seis navalhas, duas pedras de limar, duas tesouras, dois espelhos, dois pentes, uma bacia de barbear e outra para se lavar. Também inclui apetrechos parar curar feridas e uma farmácia de bordo com ungüentos, óleos aromáticos, purgantes, água destilada e ervas medicinais. A função do barbeiro é tão importante que ele é dos poucos tripulantes com o privilégio de dividir a mesa de jantar com o capitão e o piloto.
Na longa solidão dos mares, as viagens são intermináveis e tediosas. O jogo de cartas constitui uma das poucas atividades de lazer a bordo, mas é malvisto pelos padres. Embora seja muito pequeno o número dos tripulantes instruídos nas letras, os padres também se opõem à leitura de livros profanos. Em seu lugar, distribuem obras que contam histórias de santos. A atividade religiosa a bordo é intensa. Os padres promovem rezas, ladainhas e representações teatrais de episódios religiosos, como o Mistério da Paixão. A adesão da tripulação é entusiasmada. Desde tempos imemoriais, os marinheiros demonstram grande fervor religioso, quando não superstição pura e simples. Sua profissão de alto risco explica esse apego.
NESTA ERA DAS NAVEGAÇÕES, VELHOS DOGMAS DESABAM
E AS FRONTEIRAS DO CONHECIDO SÃO EMPURRADAS
Que tempos extraordinários estamos vivendo, nesta metade do segundo milênio da era cristã. O mundo que conhecemos muda à chegada de cada nau que sobrevive aos perigos das expedições marítimas. Carregadas de ouro da Guiné ou de pimenta das Índias, as embarcações trazem uma mercadoria mais preciosa ainda: a informação. É com base nela que sabemos como as fronteiras do planeta se alteram, abarcando confins nunca dantes imaginados. Dogmas antigos desabam, o que parecia sólido se desmancha no ar. Com um misto de espanto diante das velhas certezas desmentidas e orgulho com os feitos desta era dos descobrimentos, o novo se instala, em nossos mapas e em nossa mente. O retorno da nau do capitão-mor Pedro Álvares Cabral, enviado em missão às Índias, marcou na semana passada um desses momentos históricos, cujo alcance mal começamos a imaginar. Na viagem de ida ao Oriente, a esquadra de Cabral aportou numa terra desconhecida, na misteriosa banda ocidental do mar Oceano. Suas dimensões ainda são ignoradas, mas o rei de Portugal já pode acrescentar a seu patrimônio, em bens e títulos, mais um troféu.
A nova terra empurra mais para adiante ainda os limites do mundo desbravado nas últimas décadas pelos navegadores. Inéditas na história humana, por suas proporções, as conquistas da navegação nasceram da necessidade: conseguir acesso alternativo às riquezas do Oriente, bloqueadas por terra pelos países onde reina a bandeira do Islã. Para forjá-las, combinaram-se à expectativa de lucro – esse elemento tão incentivador – a audácia de desafiar o desconhecido, um sincero desejo de propagar a fé cristã e os avanços tecnológicos que nos permitem navegar em mar aberto. Foi assim que rompemos as barreiras da geografia e da própria mente. Basta olhar como pensávamos ser o mundo até pouco tempo atrás: os mares não se comunicavam, a maior parte do planeta era coberta por terra, ninguém jamais sairia com vida da zona tórrida que inflamava a linha do Equador. A idéia de existir gente habitando o outro lado da Terra, os chamados antípodas, desafiava a própria Bíblia (pois não podiam ser descendentes de Adão). Quem a defendesse, mais do que ao ridículo intelectual, se arriscava à fogueira da Inquisição. Todas essas certezas foram demolidas. Há treze anos o navegador Bartolomeu Dias contornou a ponta da África; Vasco da Gama levou a viagem até as Índias a bom termo uma década depois. Entre os dois, o genovês Cristóvão Colombo, embora imaginasse erroneamente estar chegando às Índias, aportou numa nova terra, muito parecida com a encontrada ao sul do Equador por Pedro Álvares Cabral. O novo mapa-múndi, que já começa a ser traçado pelos cosmógrafos, saiu da experiência desses homens, não de suposições baseadas em ensinamentos nunca comprovados ou interpretações teológicas. Temos hoje a inebriante sensação de que podemos dominar esse admirável mundo novo e devassar os mistérios da natureza. Ao lado das expedições marítimas, acontecem outras viagens em direção ao conhecimento e à ruptura com o que parecia intocável. Ancorado na Itália, um movimento de renascimento cultural, de caráter humanista, irradia-se pela Europa. Lideranças da Igreja são alvo de críticas sem precedentes à sua corrupção, licenciosidade e afastamento das bases da doutrina cristã. A estrutura do corpo humano é dissecada nos estudos de anatomia, em benefício dos médicos e dos artistas. Pintores geniais, como o florentino Leonardo da Vinci, avançam na ciência da perspectiva, abrindo com suas obras janelas para um mundo em mutação. Com os progressos da imprensa, a divulgação do conhecimento é cada vez mais rápida. Espremido no canto ocidental da Europa, pequeno, sem grandes riquezas, Portugal está plantado no centro dessas revoluções. Foi aqui que brotou o ímpeto de nos lançarmos aos mares desconhecidos e aqui se desenvolveu a ciência náutica que por eles nos conduz. Homens humildes, analfabetos, transformam-se em gigantes da navegação. Fidalgos habituados às doçuras da vida na corte enfrentam os perigos, as doenças e as misérias do cotidiano de bordo. Navegadores consagrados, que poderiam deitar-se sobre os louros das conquistas já alcançadas e das generosas pensões reais, fazem-se ao mar novamente. Querem ir além, sempre mais adiante. Se mais mares houver, nunca antes navegados, lá chegarão.
RETORNO DA NAU DO CAPITÃO- MOR CABRAL CONFIRMA O ACHAMENTO DE TERRA IMENSA DO OUTRO LADO DO MAR OCEANO
Uma terra imensa, coberta de matas verdejantes e cortada por rios de água muito doce, habitada por gente boa e inocente, que gosta de festa, de música e anda nua, exceto por magníficos enfeites de plumas, tão multicoloridos quanto os papagaios que voam entre os grandes arvoredos. Foi esse o mundo novo que se descortinou diante dos olhos da esquadra do capitão-mor Pedro Álvares Cabral no dia 22 de abril do ano passado. É essa a extraordinária notícia confirmada em detalhes na última terça-feira, 23 de junho, quando o navio do comandante embicou no porto de Lisboa. Gasta depois de tão longa viagem, velas esfarrapadas, tripulação pouca, a nau retornada trazia a boa nova e valorosos sobreviventes da armada que o rei dom Manuel mandou para as terras das Índias há mais de um ano. Ao entrar na Ribeira das Naus, entre os gritos de alegria da população, o capitão Cabral concluiu com sucesso a primeira missão militar-comercial de grande porte despachada pela Europa à rica Calicute e outras cidades das Índias. Mais extraordinário ainda foi receber de volta o comandante do descobrimento de uma terra desconhecida, um mundo virgem e pagão nas misteriosas bandas ocidentais do Mar Oceano.
Após o descobrimento, Cabral mandou de volta a Lisboa um de seus capitães, Gaspar de Lemos, a bordo de uma naveta, nove dias depois de avistado, na data que promete ficar memorável de 22 de abril de 1500, "um grande monte, mui alto e redondo, e outras serras mais baixas ao sul dele, e terra chã com grandes arvoredos, ao qual monte alto o capitão pôs nome o Monte Pascoal e à terra, a Terra da Vera Cruz". Assim relata a primorosa e detalhada carta redigida por Pero Vaz de Caminha, o escrivão da armada. Caminha, sabe-se agora, perdeu a vida no ano passado, impiedosamente massacrado, nas praias da cidade indiana de Calicute. Deixou, porém, a descrição minuciosa da terra, cujo nome já está sendo mudado para Santa Cruz.
Trata-se de terra povoada, habitada por gente de costumes diferentes e fala incompreensível, porém branda e alegre no trato. "A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, e estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto", anotou o escrivão. No breve período que lá passou a armada de Pedro Álvares, não trocaram palavra que se entendesse, mas deram e ganharam presentes. A carta de Caminha refere-se à vastidão de Santa Cruz, que os descobridores não concluíram ser ilha ou terra firme, embora a segunda hipótese pareça mais provável.
Está viajando à nova terra, neste momento, uma nova frota. Seu objetivo é comprovar que Santa Cruz não é uma ilha, e sim massa de terra de grandes proporções. Sabe-se do objetivo da viagem graças aos comentários, feitos antes da partida, pelo navegante italiano Américo Vespúcio, comandante dessa empresa. Vespúcio não é nenhum novato. Já esteve navegando pelas águas e ilhas que o genovês Cristóvão Colombo desbravou, sob a bandeira espanhola, em sua memorável empreitada para o Ocidente em 1492. Da atual expedição portuguesa à Terra de Santa Cruz, que ainda tem muitos meses pela frente, certamente virá o enterro definitivo do mito ao qual se apega tão persistentemente o bravo navegante genovês – o de que as ilhas por ele descobertas, bem mais ao norte do Mar Oceano, fazem parte das Índias. Desde que Vasco da Gama chegou ao Oriente, navegando em direção oposta à de Colombo, aqui em Portugal se tem certeza do engano do genovês.
Quem se aglomerou na Praia do Restelo, às margens do Tejo, no domingo, 8 de março de 1500, para dar o último adeus à expedição cabralina poderia imaginar que a disposição das terras e águas do planeta, tal como a conhecemos, estaria perto de se tornar obsoleta? Ninguém, responderiam os mais apressados. Alguma idéia disso, no entanto, já se formava. Mais instigante ainda é a possibilidade, nada absurda, de que o capitão Cabral nem tenha sido o primeiro enviado português a deparar com o novo território. A política real, como se sabe, é a de tentar manter sob estrito sigilo informações estratégicas sobre rotas de navegação e descobrimentos de áreas até agora desconhecidas da cristandade. Fontes bem informadas, no entanto, dão a entender que Duarte Pacheco Pereira, o grande cosmógrafo e navegador embarcado na armada de Cabral, já a teria avistado, em expedição secreta que largou em 1498 por ordem expressa do rei. O próprio Duarte Pacheco já estaria rascunhando um estudo secreto de cosmografia e navegação no qual menciona uma "grande terra firme" – palavras textuais, diz quem teve acesso ao rascunho – que teria avistado na sigilosíssima missão.
Há mais. A se confirmar a vasta extensão da nova terra, foi outra região dela que chegou o sevilhano Vicente Pinzón, no período entre a expedição de Duarte Pacheco e a de Cabral. Navegante experiente, companheiro de viagem de Colombo, Pinzón cruzou o Mar Oceano no comando de quatro caravelas no período extraordinariamente curto de vinte dias e chegou ao que poderia ser a porção norte do novo território. Ao contrário da armada cabralina, encontrou habitantes hostis, o que abreviou sua estada em terra. De volta ao mar, prosseguiu pela costa, encontrou um rio imenso e seguiu viagem rumo ao norte. Quem conhece de perto os meandros da corte conta, em troca da garantia de anonimato, que dom Manuel mandou seu capitão-mor Cabral dar por descoberta a Terra de Santa Cruz em nome de Portugal por ser sabedor de que: primeiro, ela estava lá pronta para ser achada; segundo, a Espanha chegar à mesma conclusão era só uma questão de tempo.
Outra indicação de que a descoberta não foi por acaso são as instruções de viagem que o capitão recebeu, ditadas pelo almirante Vasco da Gama em pessoa. Gama orientou Cabral a, saindo do Tejo, tomar o rumo da Ilha de São Nicolau, nos Açores. Até aí, tudo dentro dos conformes. O truque já conhecido para escapar das intempéries que assolam a navegação na costa africana é sair para mar aberto, no rumo oeste, num vasto semicírculo, passando pelas ilhas açorianas, primeira parada das expedições.
Gama, no entanto, manda Cabral passar sem aportar. "Se ao tempo que aí chegarem tiverem água em abastança para quatro meses, não devem pousar na dita ilha nem fazer nenhuma demora", instrui. Cabral não parou – seguiu os ventos para o mar aberto e para a grande curva a oeste. Com um detalhe: por motivos que não explicou publicamente, seguiu muito além que o descobridor do caminho das Índias. De tanto abrir a curva, foi dar com os costados, literalmente, nas praias de um mundo novo. Seria então uma escala planejada? Confirmação oficial não existe, e talvez a dúvida permaneça por muito tempo. Para aumentar o mistério, sabe-se que mestre João Faras, médico do rei e conhecedor das artes da navegação pelas estrelas embarcado na armada de Cabral, também escreveu a dom Manuel para falar sobre a localização exata da nova terra. Bastaria, disse o reputado cientista, consultar o mapa-múndi que existe em Lisboa, em poder do navegador Pero Vaz da Cunha, vulgo Bisagudo. Ou seja, o território já seria não só conhecido como secretamente mapeado.
Pouco versado nas artes da cartografia, o escrivão Pero Vaz de Caminha, ao contrário, tem os olhos mais voltados para a paisagem humana e o cenário natural da terra encantada em que a esquadra aportou. O escrivão é todo surpresa e deslumbramento com as florestas, os rios, os bichos e, principalmente, as gentes. Com base na sua descrição, percebe-se que os nativos, de físico, se parecem com os das Índias Ocidentais – aqueles indivíduos que Colombo trouxe de volta e exibiu inclusive em Lisboa, na imprevista escala que aqui foi obrigado a fazer na sua primeira e difícil viagem de volta. A julgar pelo encontro inicial, os habitantes das verdejantes florestas da nova terra são pacíficos, gentis e hospitaleiros.
Com notável capacidade de observação, além da mente aberta para uma cultura desconhecida e diferente, o escrivão não escondeu sua admiração pela excelente forma física desses estranhos (e, principalmente, das estranhas) – nus, bem-feitos de corpos, cabelos longos raspados na fronte, cocares de penas na cabeça. Contou sobre sua moradia, em cabanas longas comuns a dezenas deles, e seu hábito de dormir em redes penduradas entre dois postes de madeira, com um fogo embaixo para aquecer. Encantou-se com comidas exóticas: "Um muito grande camarão e muito grosso, que em nenhum tempo o vi tamanho", e os "muito bons palmitos (que) colhemos e comemos deles muitos".
Com enorme curiosidade se aguarda a volta dessa segunda expedição à nova terra. Será ela abundante em ouro e riquezas? Será seu solo propício ao cultivo e à criação? Nosso escrivão não tinha dúvida: "A terra é de muitos bons ares, frescos e temperados. Águas são muitas, infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo". A primeira amostra dessa luxuriosa fertilidade já chegou a Portugal com a naveta de carga em que Gaspar de Lemos trouxe a notícia do achamento ao rei – troncos de brasil, a madeira cor de brasa que tinge de vermelho os finos tecidos de Flandres, da França e da Inglaterra.
Imaginar as maravilhas que tal descoberta pode envidar para a glória de Portugal, eis um exercício de virar a cabeça do cético mais empedernido. Fincar feitorias e garantir que embarquem em naus portuguesas a pimenta-malagueta, o gengibre, a canela, as sedas e as pedrarias das Índias é certeza de poder e riqueza ímpares. Controlar e prover a Europa dos escravos, do ouro e de metais preciosos da África é garantia de um inesgotável manancial de ricos tesouros. Mas tornar-se senhor absoluto de terras inexploradas, com tudo o que nelas se encontra em gente, animais, preciosidades, vegetação, rios e montes, é agigantar Portugal em escala nunca sonhada.
Só por isso certamente já terá valido a pena o grande investimento, humano e financeiro, representado pela esquadra de Cabral. Ao partir, a maior frota jamais montada nestas bandas tinha treze navios (nove naus bem armadas, três caravelas ligeiras e a naveta de carga), 200 homens, mais bagagens, víveres e armamento pesado. A financiá-la teve, mais que todos, os recursos do investidor florentino Bartolomeu Marchione, judeu convertido, um dos primeiros a pôr fé e ver fortuna na saga descobridora dos portugueses. Mais de 100 homens se empilhavam em cada nau – uns 30 metros de espaço útil rigidamente dividido de acordo com a hierarquia. Naufrágios e combates com forças hostis nas Índias (milagrosamente, a frota de Cabral foi poupada das doenças que grassam nas expedições marítimas, como o mal das gengivas e a fraqueza dos pulmões) cobraram o seu preço. Das doze naus que seguiram para as Índias, só duas voltaram até agora, a capitânia e a Anunciada, do mercador Marchione. Esperam-se para breve, por terem sido avistadas ou encontradas em Porto de Cabo Verde, outras quatro.
É esse o preço que pagamos por nos lançarmos ao mar, sempre para além de todos os limites conhecidos. Navegando águas tempestuosas, sob estrelas não mapeadas, plantamos uma fortaleza na África e abrimos caminho para as riquezas das Índias. Agora, temos diante de nós o mistério de uma nova terra, cuja vastidão apenas adivinhada nos tira o fôlego, em espanto. O que virá de tudo isso?
NA ESQUADRA, ESPANHÓIS, JUDEUS, UM AFRICANO E ATÉ INDIANOS
O comando dos 200 homens da armada confiada ao capitão Pedro Álvares Cabral foi entregue a fidalgos de espírito aventureiro e sede de fortuna, como é de hábito. As coisas práticas da marinharia ficaram a cargo de navegadores de conhecimentos incontestáveis, como o tragicamente falecido Bartolomeu Dias, e seu irmão Diogo e Nicolau Coelho. A gente de mar e de guerra veio dos campos lusitanos, tradicionais fornecedores da mão-de-obra dos desbravamentos. É interessante notar, ainda, que a grande quantidade de estrangeiros atraídos para Portugal pelo avanço incontestável da navegação nacional também estava bem representada entre a tripulação que viu nascer a nova terra aos olhos europeus.
Sancho de Tovar, o subcomandante, é fidalgo castelhano, com história de honra e vingança típica de nossos esquentados primos do outro lado da fronteira – ele matou o juiz que sentenciou seu pai a ser degolado, por causa de uma disputa política com os monarcas espanhóis. Refugiado em Portugal, a Sancho coube a honra da soto-capitania da armada de Cabral. Dois judeus estrangeiros também estavam presentes na equipe multinacional. Um é o castelhano João Faras, médico do rei e cosmógrafo. Outro, por nome Gaspar, é hoje figura imprescindível nos tratos marítimos de Portugal. Vivia já há muitos anos na Índia quando se aproximou de Vasco da Gama, dizendo ser cristão. Apareceu bem vestido, simpático e insinuante, tanto que, mesmo confessando depois ser judeu, procedente da Polônia, caiu nas boas graças de Gama: batizado, dele ganhou o seu sobrenome. Gaspar da Gama, ou Gaspar da Índia, fala as línguas e conhece como ninguém os usos e costumes das Índias. Foi ouvido atentamente por Pedro Álvares, com quem embarcou, como conselheiro e intérprete.
Igualmente foi de valia um grumete negro, cativo da Guiné, nos contatos com os habitantes de regiões africanas O descobrimento da nova terra foi testemunhado ainda por um cinco habitantes das longínquas Índias, embarcados na viagem pioneira de Vasco da Gama para aprender as coisas de Portugal, que voltavam para casa com Cabral.
GENTIL NO TRATO, O CAPITÃO CABRAL TAMBÉM USA A FORÇA
E TRAZ SALDO POSITIVO DA VIAGEM ÀS ÍNDIAS
Aos 32 anos, fidalgo de maneiras elegantes, alto como seu pai, o famoso "gigante da Beira", o capitão-mor Pedro Álvares Cabral trouxe da longa missão diplomático-comercial (um ano e três meses no mar) resultado positivo, apesar de consideráveis percalços. Ele refez a rota desbravada por Vasco da Gama para as Índias, de passagem descobriu a formidável terra desconhecida nos confins do Mar Oceano e instalou o primeiro entreposto comercial nas bandas do Oriente. Não conseguiu, porém, estabelecer a feitoria que inaugura o intercâmbio comercial entre a Europa e as Índias por via marítima no riquíssimo reino de Malabar, como era o objetivo principal. Ao contrário, as relações com Calicute, capital de Malabar, parecem arruinadas por graves incidentes que deixaram pilhas de cadáveres dos dois lados. O saldo da missão reflete a própria personalidade do capitão. Fidalgo de fino trato, ele se desdobrou para cumprir as instruções do rei dom Manuel no sentido de sempre dar "boas mostras de si e da armada", procurando soluções diplomáticas em situações complicadas. Numa demonstração de delicadeza d'alma rara entre navegadores de todas as estirpes, chegou a mandar cobrir os nativos de Santa Cruz que, durante a escala na terra recém-descoberta, pegaram no sono a bordo de sua nau, protegendo-os da brisa noturna. Homem de armas por formação, recorreu à diplomacia dos canhões quando julgou necessário.
O uso da força, mesmo em missões de caráter diplomático ou comercial, é de praxe. Nos treze navios da esquadra que comandou, Cabral levou um verdadeiro exército. Eram 1.200 homens, a maior parte gente de guerra. Mesmo com a armada consideravelmente reduzida (uma embarcação desapareceu, outra foi mandada de volta a Portugal com a notícia do descobrimento de Santa Cruz e quatro naufragaram a caminho do Cabo da Boa Esperança), Cabral fez uso dos canhões a partir das escalas na costa oriental da África. Os primeiros alvos foram duas naus supostamente mouras e logo aprisionadas – os muçulmanos do norte da África são inimigos tratados a bala por Portugal. Uma gafe. As naus eram, na verdade, de Melinde, cidade africana onde Vasco da Gama havia sido muito bem recebido na viagem anterior. Restou a Cabral pedir desculpas. O capitão e sua frota chegaram ao destino principal da viagem, Calicute, em 13 de setembro do ano passado, disparando salvas de tiros de canhão. A idéia era intimidar o samorim, como é chamado o rei desse rico pedaço das Índias. Inicialmente, funcionou. O soberano de Calicute aceitou enviar reféns à frota portuguesa como garantia de que uma delegação encabeçada por Cabral poderia desembarcar para tratar de negócios, sem risco de vida. Vestindo seus melhores trajes e até com jóias emprestadas, para impressionar a nobreza da terra, os emissários recém-chegados realizaram o primeiro contato oficial. Depois de muita insistência, o soberano acabou concordando com a instalação de uma feitoria na cidade. A aparente cordialidade, no entanto, não evitou um boicote. Durante os três meses em que os seis navios portugueses permaneceram parados no Porto de Calicute, apenas dois foram carregados com especiarias. Espertamente, o samorim alegou que a culpa era dos mercadores mouros havia muito instalados nas Índias, aborrecidos com a concorrência. Para lhes dar uma lição, Cabral resolveu apreender, saquear e bombardear uma nau mourisca que estava parada no porto. A represália não tardou. A feitoria portuguesa foi invadida, com saldo de cinqüenta mortos, incluindo seu chefe, Aires da Cunha (o filho dele, Antonio, de 12 anos, escapou por pouco), e o escrivão Pero Vaz Caminha. A reação de Cabral ao trágico massacre veio com força total. A frota portuguesa recebeu ordens de atacar dez naus mouras, fundeadas no porto, deixando cerca de 600 mortos. De quebra, bombardeou Calicute, destruindo parcialmente a cidade, com seus belos e frágeis palácios. Até o samorim, com sua corte, precisou fugir do canhonaço. Cabral mostrou força, sem dúvida, mas fechou uma porta para o comércio.
Para salvar a empreitada, Cabral seguiu rumo aos reinos vizinhos de Cochim e Cananor, inimigos de Calicute. A tática de explorar as rivalidades locais deu certo. Foi nesses reinos que a missão portuguesa estabeleceu relações comerciais, abrindo finalmente as portas do comércio com as Índias e suas perspectivas tão promissoras. Mesmo desfalcada, a frota de Cabral está voltando dessa primeira viagem abarrotada de especiarias – canela, gengibre e, principalmente, pimenta. Financeiramente, o capitão conseguiu com isso o saldo mais positivo da missão. O valor da quantidade de especiarias transportadas é suficiente para pagar três vezes o custo da viagem. E isso, afinal, é o que interessa.
ESCRIVÃO RENOMADO, PERO VAZ DE CAMINHA PÕE BELEZA, ADMIRAÇÃO E CONFIANÇA NO RELATO DE UMA VIAGEM SEM PAR
Muitos caminhos e muitas terras estão sendo visitados pela primeira vez nestes tempos. Nenhum contou com descrição mais primorosa e admiração mais explícita do que Santa Cruz, a terra que o capitão Pedro Álvares Cabral descobriu e à qual seu escrivão, Pero Vaz de Caminha, deu vida em sete folhas de papel cobertas de escrita miúda. A visão do Monte Pascoal e, depois, dia a dia, o contato dos portugueses com a terra desconhecida são descritos com tal riqueza e profusão de detalhes que, ao fim, Caminha pede ao rei perdão "se a algum pouco alonguei". Não precisava – nada é demais sobre esse lugar tão estranho, com sua gente nua e pintada.
Natural do Porto, Pero Vaz vem de família burguesa de boa cepa. Escrivão, filho de escrivão, cuidava no Porto de anotar as taxas e os impostos devidos ao Tesouro do reino, como mestre da Balança da Moeda. Fiel servidor e cavaleiro dos últimos três reis, aos 50 anos, já avô, viu-se convocado pelo atual soberano para escrivão da nau de Cabral (cada navio tinha o seu, para anotar receita, despesa e falecimentos). Quando a expedição chegasse a termo na Índia, deveria ocupar o mesmo posto na feitoria portuguesa em Calecute. A missão acabou em tragédia. Ao cabo de três meses, a feitoria foi atacada e seus 50 ocupantes, entre eles Pero Vaz de Caminha, massacrados diante dos olhos do capitão Cabral, ancorado a pouca distância dali. Caminha morreu sem saber que, em reconhecimento a seu valor, dom Manuel decidiu acatar o pedido anotado nas últimas linhas – perdoar e dar por encerrado o exílio de seu genro Jorge de Osório. Leia a seguir os trechos mais importantes da carta sobre o descobrimento da nova terra, avistada pela primeira vez na quarta-feira, 22 de abril de 1500:
"À quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em direito da boca dum rio. E dali houvemos vista de homens, que andavam pela praia, obra de sete ou oito. E o capitão mandou no batel, à terra, Nicolau Coelho, para ver aquele rio. E tanto que ele começou para lá ir, acudiram pela praia homens, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, eram ali dezoito ou vinte homens, pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos e suas setas. Vinham todos rijos para o batel e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pusessem os arcos; e eles os puseram. Ali não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho, que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe deu um sombreiro de penas de aves compridas com uma copazinha pequena de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu continhas brancas, miúdas.
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma coisa cobrir nem mostrar suas vergonhas. E estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto. Traziam ambos os beiços debaixo furados e metidos por eles ossos de osso branco. Os cabelos seus são corredios, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia uma maneira de cabeleira de penas de ave amarela, mui basta e mui cerrada. O capitão, quando eles vieram, estava assentado em uma cadeira e uma alcatifa aos pés por estrado, e bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço. E nós outros, que aqui na nau com ele imos, assentados no chão por essa alcatifa. Entraram e não fizeram nenhuma menção de cortesia nem de falar ao capitão nem a ninguém. Porém, um deles pôs olho no colar do capitão e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizia que havia em terra ouro. E também viu um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e então para o castiçal, como que havia também prata.
Deram-lhes ali de comer pão e pescado cozido, confeitos, mel e figos; não quiseram comer daquilo quase nada. E alguma coisa, se a provaram, lançavam-na logo fora. Trouxeram-lhes vinho por uma taça, mal lhe puseram assim a boca e não gostaram dele nada, nem o quiseram mais. Trouxeram-lhes água, tomaram dela bocados e não beberam. Somente lavaram as bocas e lançaram fora. E então estiraram-se assim de costas na alcatifa, a dormir, sem ter nenhuma maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas e as cabeleiras delas bem rapadas e feitas. O capitão lhes mandou pôr às cabeças coxins e o da cabeleira procurava assaz por a não quebrar. E lançaram-lhes um manto em cima e eles consentiram e dormiram.
Ao sábado pela manhã, mandou o capitão Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, aos quais mandou dar camisas novas e carapuças vermelhas e dois rosários de contas brancas de osso, que eles levavam nos braços. E mandou com eles para ficar lá mancebo degredado, a que chamam Afonso Ribeiro, para andar lá com eles e saber de seu viver e maneira; e a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim direitos à praia. Ali acudiram logo obra de 200 homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pusessem os arcos e eles os puseram e não se afastavam muito. E, mal puseram seus arcos, então saíram os que nós levávamos e o mancebo degredado com eles. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos, pelas espáduas; e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha.
Ao domingo de Pascoela, pela manhã, determinou o capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu, a qual disse o padre frei Henrique. Enquanto estivemos à missa e à pregação, seriam na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como os de ontem, com seus arcos e setas, os quais andavam folgando e olhando-nos, e assentaram-se. Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, espraia muito a água e descobre muita areia e muito cascalho. Foram alguns, em nós aí estando, buscar marisco e não o acharam. E acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande camarão e muito grosso, que em nenhum tempo o vi tamanho.
Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas não muito altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos. E além do rio andavam muitos deles, dançando e folgando uns ante outros, sem se tomarem pelas mãos, e faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diego Dias, que é homem gracioso e de prazer, e levou consigo um gaiteiro nosso. E eles folgavam e riam e andavam com ele mui bem, ao som da gaita.
À segunda-feira, depois de comer saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras vezes. E traziam já muito poucos arcos e estiveram assim um pouco afastados de nós. E depois, poucos e poucos, misturaram-se conosco e abraçavam-nos e folgavam e alguns deles se esquivavam logo. Neste dia, os vimos de mais perto e mais à nossa vontade, por andarmos todos quase misturados. E o capitão mandou àquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem andar lá entre eles. Foram a uma povoação de casas, em que haveria nove ou dez casas, as quais diziam que era tão comprida cada uma como esta nau capitânia. E eram de madeira, e das ilhargas, de tábuas, e cobertas de palha. Tinham dentro muitos esteios e de esteio a esteio uma rede, em que dormiam, e, debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma em um cabo e outra no outro. E diziam que, em cada casa, se acolhiam trinta ou quarenta pessoas e que assim os achavam e que lhes davam de comer daquela vianda que eles tinham, a saber: muito inhame e outras sementes, que na terra há, que eles comem. E, como foi tarde, fizeram-nos logo todos tornar e não quiseram que lá ficasse nenhum.
À terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa. Estavam na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram-se logo para nós, sem se esquivarem. E depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos. E enquanto nós fazíamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande cruz dum pau que se ontem para isso cortou. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros e creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro, com que a faziam, que por verem a cruz, porque eles não têm coisa que de ferro seja.
À quarta-feira não fomos em terra, porque o capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo quase pela manhã e fomos em terra por mais lenha e água. Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles e daí a pouco começaram de vir; e parece-me que viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Comiam conosco do que lhes dávamos e bebiam alguns deles vinho e outros o não podiam beber, mas parece-me que se lho avezarem, que o beberão de boa vontade. E andavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós andávamos entre eles.
Quando saímos do batel, disse o capitão que seria bom irmos direitos à cruz, e que nos puséssemos todos em joelhos e a beijássemos, para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim o fizemos. E esses dez ou doze que aí estavam, acenaram-lhes que fizessem assim e foram logo todos beijá-la. Parece-me gente de tal inocência que, se os homens entendessem e eles a nós, que seriam logo cristãos, porque eles não têm nem entendem em nenhuma crença, segundo parece. Eles não lavram, nem criam, nem há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem outra nenhuma alimária, que costumada seja ao viver dos homens; nem comem senão desse inhame que aqui há muito e dessa semente e frutos que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto com quanto trigo e legumes comemos.
E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira e fomos desembarcar acima do rio, onde nos pareceu que seria melhor chantar a cruz para ser melhor vista. Chantada a cruz com as armas e divisa de Vossa Alteza, que lhe primeiro pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique. Ali estiveram conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos em joelhos, assim como nós.
Esta terra, Senhor, me parece que será tamanha, que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa; traz ao longo do mar grandes barreiras, e a terra muito cheia de grandes arvoredos; é toda praia muito formosa. Nela até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem nenhuma coisa de metal, nem de ferro. Porém, a terra, em si, é de muito bons ares. Águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem. Porém, o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que será salvar esta gente.
E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta vossa terra vi. E, se a algum pouco alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha de vos tudo dizer mo fez assim pôr pelo miúdo. E, pois que, Senhor, é certo que assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há-de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da Ilha de São Tomé Jorge de Osório, meu genro, o que d'Ela receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, de vossa ilha da Vera Cruz, hoje sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500."
UMA INTRÉPIDA CEPA DE NAVEGADORES PARTE
PARA DECIFRAR O DESCONHECIDO
Que gente é esta que está reformulando os contornos do mundo em que vivemos? E como esta cepa de desbravadores viceja, mais do que em qualquer outro lugar, em Portugal? Os homens são vistos a toda hora, nos estaleiros da Ribeira das Naus, nas tendas das peixeiras ou nos debates que animam a corte. São marujos simples, tocados do campo para o mar pela fome ou pela peste. Pilotos experientes, orgulhosos da ascensão profissional. Fidalgos de linhagem respeitável e fortuna pouca, dispostos a servir ao rei, à Igreja e às próprias necessidades financeiras. Aventureiros, sábios, estrangeiros das mais diversas procedências.
Sair ao mar é, para os portugueses, questão de destino e necessidade. Nesta nesga de terra espremida entre o mar, de um lado, e a Espanha, de outro, o futuro é navegar. E é isso que tem sido feito nas últimas décadas. A arrancada foi dada por dom Henrique, o infante – como são chamados os filhos mais novos do rei –, que mereceu o epíteto de o Navegador. Por quase quarenta anos, entre 1422 e 1460, fez palmilhar com suas caravelas o litoral oeste da África. Acumulou fortuna, abriu horizontes e definiu os rumos do Portugal moderno. Dom Henrique teve a prova definitiva de que navegar era o destino de Portugal quando, na Ceuta tomada aos muçulmanos do norte da África pelos soldados de seu pai, dom João, viu de perto o que a Europa estava perdendo ou pagava fortunas para ter: armazéns abarrotados de especiarias, jóias e tecidos do Oriente e ouro, prata e marfim do interior africano. Viu, mas não aproveitou, pois a ocupação cristã removeu Ceuta da rota das caravanas. A partir daí, dom Henrique abraçou o que seria o objetivo de sua vida: ir às fontes da riqueza, de navio, por onde ninguém tinha navegado antes.
Tímido e retraído, dom Henrique, uma vez definido seu destino, viveu como um monge. Consta, inclusive, que morreu sem conhecer mulher. Raramente ia à corte, em Lisboa, preferindo a reclusão de seu castelo no Promontório de Sagres. Lá desenvolveu a caravela, organizou estudos de astronomia e cartografia, abriu caminho a novos e avançados instrumentos de navegação. Com seus recursos, dom Henrique reuniu marinheiros audazes e os pôs a descobrir. E como descobriram! Sem nunca ter saído por mares desconhecidos, o príncipe acumulou, acima de tudo, um decisivo conjunto de informações sobre o temido Mar Oceano.
Légua a légua, os barcos portugueses foram descendo o mar imenso, beirando a costa da África. Eram viagens governadas pelo pânico. Acreditava-se que no mar aberto havia monstros, serpentes gigantescas. Foram necessários doze anos e quinze expedições para desmentir todas as lendas sobre o oceano, que paralisavam os marinheiros. Nessa aventura, as caravelas acharam as ilhas de Cabo Verde, levaram os portugueses à Ilha da Madeira e aos Açores, percorreram o litoral africano. Os marinheiros que voltavam para contar a história traziam relatos cheios de novidades. O retorno financeiro, bem mais concreto, firmou-se a partir de 1444, quando a desolação deu lugar a terras habitadas. Duzentos africanos foram capturados e prontamente vendidos como escravos em Portugal, ponto de partida do lucrativo tráfico dos dias atuais – por determinação do papa, o rei pode dispor desde então como quiser de todos os não-cristãos nas terras desbravadas pelos portugueses.
Vieram, enfim, o ouro e o marfim, e o comércio floresceu: desde 1445 que umas 25 caravelas aportam todo ano na costa conhecida da África. Ao morrer, em 1460, dom Henrique, o infante taciturno e místico, mudara uma nação: Portugal desviara os olhos do continente e os voltara para o oceano imenso, e o que nele havia a ser conquistado. Começava a epopéia que ainda não terminou.
À CUSTA DE TEIMOSIA E SACRIFÍCIOS, AS CARAVELAS DOBRAM A
PONTA DA ÁFRICA
Ao se aventurar pelo mar que bordeja a África ocidental, Portugal ganhou nova dimensão no mundo. Para aqui acorreram marinheiros, aventureiros, espiões – de Veneza, de Gênova, da Espanha. Sabia-se, de ouvir dizer, que a costa da África era rota traiçoeira, sujeita a borrascas, a calmarias, a correntes inesperadas. Como, então, tinham conseguido avançar os navegantes portugueses? De que instrumentos dispunham? Que orientações seguiam? Foi nesse período, enquanto as caravelas avançavam arduamente pelas águas do sul, que o português se tornou a língua franca da navegação e Lisboa, o pólo de atração dos que buscam saber marítimo. Era a hora de Portugal assegurar as conquistas obtidas, tarefa para a qual o rei dom Afonso V convocou a iniciativa privada.
Enredado em disputas políticas com a Espanha, dom Afonso expandiu as descobertas marítimas lançando mão de um expediente simples e eficaz: deu o monopólio do comércio na região africana onde vicejava o comércio do ouro a Fernão Gomes, rico negociante lisboeta. Em troca da concessão, ele devia reservar à coroa uma parte dos lucros e explorar pelo menos 100 léguas de litoral por ano, durante cinco anos. Enquanto vigorou, a associação deu certo. O rei, no entanto, tinha um filho e sucessor ambicioso (o futuro rei dom João II), homem de caráter centralizador e interessadíssimo em monopolizar os lucros do comércio ultramarino. A peça-chave de sua política externa foi a construção do Castelo de São Jorge da Mina, misto de fortaleza e entreposto comercial, erguido na costa africana para garantir o comércio do ouro. Com o estímulo de dom João, as naves portuguesas cruzaram pela primeira vez a linha do Equador. Para isso, tiveram de aprender a navegar com base em informações astronômicas inteiramente novas. Os portugueses navegavam no Hemisfério Norte usando a estrela Polar como referência. No Hemisfério Sul, não se avista essa estrela. Foi preciso então buscar novas referências no céu, com a ajuda dos astrônomos.
Baseado nesses novos cálculos, Diogo Cão, reputadíssimo navegador do oceano, pôde continuar descendo o litoral africano, engolindo cada vez mais território. Em suas naves viajaram, pela primeira vez, os padrões de pedra que agora assinalam a posse portuguesa das áreas descobertas. Quanto mais longas foram ficando as viagens, mais duras as condições a bordo.
Foi assim, de imensos sacrifícios, a descida pela costa africana. Quanto mais desciam, mais perto chegavam de uma esperança – confirmar a existência de uma passagem, o Cabo das Tormentas, no extremo sul do continente – que realizaria um sonho – atingir as Índias pelo caminho do mar. A África era ouro, prata, marfim, escravos, pimenta, muitas maneiras de renda e comércio. Mas as Índias – ah, as Índias eram riquezas infinitas de um jaez desconhecido na Europa cristã, sedas e pedrarias cem fim, especiarias de todos os cheiros e sabores, um cintilante mistério a ser desvendado. Como seria essa terra? Como seriam os índios que lá habitavam? Na ânsia de encontrar aliados que ajudassem a quebrar o estrangulamento do comércio por terra com o Oriente, controlado pelos infiéis muçulmanos, imaginou-se aqui, durante muito tempo, que lá existiriam cristãos. Alcançar as Índias pela via do Mar Oceano iria ao mesmo tempo instalar Portugal no centro desse comércio, em situação vantajosa, e somar forças contra o inimigo islâmico.
Uma conjunção perfeita, que dom João II se esforçou para transformar em realidade. Em 1487, despachou duas missões na direção das Índias, uma por terra, de informação, e outra, exploratória, por mar. À frente desta, colocou um de seus mais experientes capitães, Bartolomeu Dias, que partiu em agosto com duas caravelas e uma nave exclusivamente carregada de mantimentos. Dias chegou ao último ponto conhecido da costa africana, o Cabo das Voltas, e continuou descendo. De tempo em tempo, ancorava e depositava em terra um dos seis africanos que, bem vestidos à portuguesa e portando pequena quantidade de ouro, prata e especiarias, tinham a tarefa de indicar aos nativos o tipo de comércio que Portugal buscava. A certa altura, mandou o navio de mantimentos ancorar e esperar por sua volta.
No meio dessa viagem sem fim, as duas caravelas foram assoladas por uma tormenta que as levou para alto-mar. Por treze dias, vagaram às cegas. Bartolomeu Dias não desistia. Continuou tentando seguir adiante, até que a tripulação se rebelou. Exaustos, famintos, com medo, os marinheiros exigiram voltar. O capitão, a contragosto, fez cada um assinar um documento que atestava a sua disposição de ir até o fim: só aceitava retornar por decisão da maioria. Dizem que chorou ao dar meia-volta. Começa a manobra, e eis que lhes surge à frente um imenso cabo – só então se deram conta de que, levados pela tempestade e pelos ventos que a ela se seguiram, tinham dobrado a ponta da África sem nem perceber! A porta marítima do caminho das Índias, que segundo a crença vigente por tanto tempo não existia, estava aberta.
Mais adiante, reuniram-se à nave de mantimentos, onde encontraram vivos apenas três dos nove homens lá deixados – e um morreu assim que os viu. Embarcaram os sobreviventes, queimaram a nau de víveres, como de costume (para manter secretos os detalhes da sua construção) e subiram o resto do litoral a oriente da África, que esta sua viagem acabara de reivindicar inteiro para Portugal. Dezesseis meses depois da partida para essa saga fenomenal, Bartolomeu Dias e os sobreviventes de sua tripulação aportam em Lisboa. Ao tomar conhecimento, o rei, eufórico, muda o nome da passagem: vai-se o Cabo das Tormentas, viva o Cabo da Boa Esperança, enfim confirmada. Resta agora a realização do sonho de chegar às Índias.
A aventura dos descobrimentos, por mar, teve um prodigioso e pouco conhecido capítulo por terra. Enquanto despachava caravelas para sondar a rota das Índias, o rei dom João II também mandou olheiros em missão secreta pela África, Arábia e Oriente. O objetivo era desvendar mistérios dos países distantes e, depois, estabelecer contato com um lendário rei cristão chamado Preste João, que há muito vem incendiando a imaginação dos europeus. Nessa tarefa, partiram de Portugal, em 1487, dois emissários reais: Pero de Covilhã e Afonso de Paiva. Uma dupla destemida, fluente no árabe, conhecedora das coisas dos mouros e experiente na arte de espionar para el-rei.
Disfarçados de mercadores árabes, percorreram Alexandria, Cairo e Aden. Separaram-se, combinando reencontro no Egito. Jamais cumpriram o trato – Afonso de Paiva morreu em seguida. Pero de Covilhã seguiu na missão de olheiro. Esteve nas Índias, na costa leste da África, na misteriosa Ilha da Lua. De suas andanças, tirou uma certeza de vital importância para os planos de Portugal: a existência de uma passagem marítima na extremidade da África. Ao voltar ao Cairo, para encerrar a bem-sucedida missão, encontrou-se com dois emissários com novas ordens do rei: ir atrás das misteriosas terras de Preste João. Súdito obediente, foi em frente. Nunca mais deu notícia. Mas, sendo Pero de Covilhã um homem de mil misteres, ainda pode ser que ouçamos um dia a sua história.
EM VIAGEM-EPOPÉIA DE DOIS ANOS,
VASCO DA GAMA CHEGA AO OBJETIVO
A almejada viagem marítima até as Índias, agora ao alcance das caravelas, constituía missão delicada, que envolvia tino de comércio, tato de diplomata e pulso de guerreiro. O comandante aparentemente ideal foi ungido pelo rei dom João: Vasco da Gama, filho de família com fumos de fidalguia. A pouca experiência no mar era compensada pela excelência dos pilotos. Esse capitão de temperamento explosivo inaugurou o critério pelo qual seriam selecionados dali por diante os comandantes das expedições navais: o nome da família e os serviços prestados à coroa.
A expedição às Índias foi cercada de intenso planejamento estratégico. Bartolomeu Dias supervisionou pessoalmente a construção das quatro embarcações: duas naus, uma caravela e o navio de mantimentos. Enquanto se preparava a viagem, suspeita-se que navegantes singrassem o Mar Oceano em missões secretas, para melhor mapear suas correntes, avaliar seus ventos e definir a rota ideal rumo às Índias. Nesse ínterim, em 1495 morreu dom João II, o ambicioso rei-mercador. A glória da abertura da rota pelo Oriente coube a seu sucessor, dom Manuel.
A expedição de Vasco da Gama se pôs ao mar em 8 de julho de 1497. A caminho, os pioneiros percorreram pela primeira vez um amplo arco que os levou por vários dias a mar aberto, sem terra à vista. De volta à costa africana, fizeram algumas paradas antes e depois de cruzar o Cabo da Boa Esperança, para reabastecer e tentar contato com nativos. Numa delas, a nave de mantimentos foi queimada, como estava previsto, com a tripulação e os víveres redistribuídos entre as restantes. Quando chegaram ao desconhecido lado oriental da África, Vasco da Gama fez parada em Moçambique, Mombaça e Melinde. Com a ajuda de um piloto local, cruzou o imenso mar das Índias, feito inédito para europeus, e ancorou, enfim, na sonhada Calecute, a "terra da especiaria, da pedraria e da maior riqueza que há no mundo".
É preciso reconhecer o mérito excepcional da expedição do hoje almirante Vasco da Gama. A viagem beira a epopéia. Tateando no escuro, os navegantes deixaram para trás o que já estava mapeado e embrenharam-se no desconhecido. Tinham dois propósitos maiores: estabelecer comércio e firmar a marca de Portugal no caminho aberto. Cumpriram ambos. Vasco da Gama aportou de volta em Lisboa em setembro de 1499, dois anos depois de partir. Sua tripulação fora dizimada pela doença e pela exaustão. Só 55, dos 170 que partiram, voltaram com vida. A caravela Bérrio teve de ser abandonada e queimada por falta de braços para fazê-la navegar. No porão das duas naus, contudo, repousavam pimenta, canela, gengibre, as especiarias que a Europa não cansa de consumir. O lado menos positivo da expedição, no entanto, já é conhecido. Vasco da Gama revelou, no Oriente, mão dura demais para os objetivos da viagem e falta de tato. À menor suspeita de ameaça, disparava os canhões, que ninguém por lá conhecia. Irritadiço e violento por temperamento, entrou em confronto com os soberanos das terras em que aportou. Assim foi em Moçambique, em Mombaça e, principalmente, em Calecute – onde deparou com a dificuldade adicional de ver seus presentes recusados. Acostumado ao escambo com os africanos, dom Manuel mandara ao soberano de Calecute uns casacos e chapéus, pedras de coral, bacias de latão, um barril de açúcar, um de mel e dois de manteiga (certamente rançosa, após tão demorada viagem). O governante, que vivia cercado de fausto, achou que os presentes não passavam de um insulto.
Além dos resultados duvidosos no delicado terreno da diplomacia, Vasco da Gama ainda incorreu em um erro de avaliação: identificar como cristãos todos os não-muçulmanos naquelas bandas. Em Calecute, a delegação portuguesa chegou a confundir um templo local com uma igreja católica e a imagem de uma deusa indiana com a Virgem Maria. Coube a Pedro Álvares Cabral desfazer o engano. Nas Índias, constata-se agora, predomina uma religião até então desconhecida na Europa, com rituais misteriosos, que vedam a prática do comércio, deixado em mãos dos muçulmanos. Erros assim encerram uma lição ilustrativa: uma das grandes descobertas dessa era dos descobrimentos tem sido a de que sabemos tão pouco sobre a terra, os mares, os povos distantes. É navegando que se aprende.
CONHECIMENTOS CIENTÍFICOS APLICADOS À
REALIDADE DE BORDO GUIAM A AVENTURA
O escrivão Pero Vaz de Caminha relata que, ao atracar em Santa Cruz, a esquadra de Cabral foi visitada por dois habitantes da terra, mancebos e de bons corpos, que se metiam em almadias, embarcações rústicas feitas de troncos de madeira atados entre si. A cena é o encontro entre duas civilizações separadas por um enorme abismo de evolução científica e tecnológica. Enquanto as almadias estão entre as mais primitivas formas de navegação usadas pelo ser humano, as naus e as caravelas portuguesas são o que de mais avançado a arte de navegar produziu até hoje. Nossos navios levam a bordo instrumentos, cartas de navegação e conhecimentos desenvolvidos pelos mais importantes sábios da cristandade – matemáticos, astrônomos, cartógrafos, geógrafos, especialistas na construção de navios e uso de artilharia, vindos de diversos países.
Portugal está na liderança dos descobrimentos porque é o primeiro, entre os países contemporâneos, a transformar a pesquisa tecnológica e científica em política de Estado. É uma aventura que começou dois séculos atrás, com as primeiras e tímidas incursões ao mundo desconhecido, e se completou com a política de portas abertas a especialistas espanhóis, catalães, italianos e alemães, com o propósito de avançar os conhecimentos náuticos de nossos oficiais e marujos.
As caravelas são um prodígio da nossa tecnologia e a vanguarda das expedições. São navios velozes e relativamente pequenos. Uma típica caravela portuguesa tem de 20 a 30 metros de comprimento, de 6 a 8 de largura, 50 toneladas de capacidade e é tripulada por quarenta ou cinqüenta homens. Com vento a favor, chega a percorrer 250 quilômetros por dia. Utiliza as chamadas velas latinas, triangulares, erguidas em dois ou três mastros. Elas permitem mudar de curso rapidamente e, em ziguezague, velejar até mesmo com vento contrário. A grande vantagem das caravelas sobre os pesados navios mercantes utilizados no Mediterrâneo por genoveses e catalães é a versatilidade. Ideais para navegação costeira, podem entrar em rios e estuários, manobrar em águas baixas, contornar arrecifes e bancos de areia. E também zarpar rapidamente, no caso de um ataque imprevisto de nativos hostis.
As naus são barcos maiores e mais lentos. A capitânia de Pedro Álvares Cabral é um navio de 250 toneladas e, ao partir, levava 190 homens. Elas são a ferramenta essencial no comércio já estabelecido com a África e no nascente intercâmbio com as Índias. Na longa viagem de ida, transportam produtos para a troca, provisões, guarnições militares, armas e canhões. Na volta, trazem as mercadorias cobiçadas pela Europa. Suas velas redondas são menos versáteis que as das caravelas, mas permitem uma impulsão muito maior com vento favorável. As caravelas, ao contrário das naus, levam pouca carga. Nem é necessário. Nessa época de grandes descobertas, a carga mais preciosa que elas podem transportar é a informação sobre as rotas marítimas e as terras recém-contatadas – um produto que não pesa nada, mas é vital para as conquistas no além-mar.
O grande mérito de Portugal não está na descoberta de novidades científicas, mas na assimilação de conhecimentos, recentes ou antigos, e sua aplicação com propósitos bem definidos, que é abrir rotas de comércio e agregar terras produtivas, onde não haja governo cristão, às propriedades da coroa. As técnicas que hoje permitem aos nossos navios cruzar o Mar Oceano, dobrar o Cabo da Boa Esperança e chegar às Índias são herança dos fenícios, dos egípcios, dos gregos e de várias outras civilizações antigas, guardadas e aprimoradas pelos mouros nos últimos séculos. A vela latina, que equipa nossas caravelas, foi trazida pelos árabes do Oceano Índico, depois de conquistarem o Egito. O uso do compasso para anotar a direção e a trajetória do navio chegou ao Ocidente no começo do século XIII. A confecção de cartas náuticas os italianos também aprenderam dos árabes, um século atrás. O astrolábio, um revolucionário instrumento de localização utilizado pela esquadra de Cabral na Terra de Santa Cruz, existe desde a Antigüidade e foi recuperado pelos astrólogos medievais para observar, em terra, o movimento e a posição dos astros no firmamento. Mesmo a bússola, fundamental nos descobrimentos, já é usada no Mediterrâneo há muito tempo por genoveses, venezianos e catalães.
São muitos os desafios científicos que os descobrimentos impuseram a Portugal. O maior deles, evidentemente, é sair ao mar alto e voltar para casa com segurança. Até pouco tempo atrás, a navegação se restringia aos portos europeus e da área em volta do Mediterrâneo, todos mapeados e bem conhecidos do mundo civilizado desde a época dos romanos. Navegava-se mais por experiência – que em Portugal chamamos de "conhecenças" – do que por instrumentos. O único tipo de carta náutica disponível até anos atrás eram os mapas do Mediterrâneo desenhados pelos italianos no século XII. Conhecidos como carta-portulano, forneciam direções e distâncias aproximadas entre os principais portos europeus e africanos.
No começo, as navegações portuguesas pelo Mar Oceano foram relativamente simples, apesar do desafio de enfrentar o desconhecido: bastava ir bordejando a costa da África. Navegava-se apenas durante o dia, usando como referência pontos geográficos, como rios, golfos e montanhas. Quando era necessário navegar à noite, a referência era a estrela Polar, entre nós conhecida como Tramontana. Quanto mais alta a estrela estivesse no céu, mais longe da linha do Equador estaria o navio, na direção do Pólo Norte. As medições eram feitas a olho nu. Depois foram aperfeiçoadas com o uso de um instrumento chamado quadrante. É um arco graduado, de 45 graus – equivalente a um quarto da esfera terrestre –, equipado com uma agulha e uma linha esticada por um peso de chumbo na ponta. Apontado para a Tramontana, o quadrante fornece a latitude exata em que se encontra o navio.
Quando os nossos marinheiros passaram a se aventurar mais longe da costa, tudo ficou mais difícil. Para fugir das calmarias do Mar Oceano, às vezes é preciso passar semanas sem avistar terra ou qualquer outro ponto seguro de referência. Além disso, ao se aproximar da linha do Equador, a Tramontana fica encoberta no horizonte. Sem ela, é impossível calcular a latitude com ajuda do quadrante. Foi para superar esse tipo de obstáculo que os reis portugueses se empenharam em buscar sábios em outros países.
Os sábios estrangeiros têm vindo a Portugal por duas razões. A primeira é a disposição da corte de oferecer-lhes postos de trabalho e status social que eles não tinham em outros reinos. De cientista em seu país de origem, esses astrônomos, matemáticos e cartógrafos passaram a trabalhar diretamente como conselheiros dos monarcas portugueses e com eles compartilhar a vida na corte. O segundo motivo é a comparativa tolerância religiosa dos portugueses. Mais inflexíveis, os monarcas espanhóis, precursores da idéia de expulsar judeus e mouros que não aceitassem abraçar o cristianismo, beneficiaram Portugal indiretamente. Os conselheiros que dom João II reuniu para desenvolver os conhecimentos náuticos são, em sua maioria, sábios judeus expulsos da Espanha em 1492.
m dos primeiros a trabalhar em Portugal foi um judeu convertido ao cristianismo trazido da Ilha de Maiorca para Sagres, em 1420, pelo infante dom Henrique, o Navegador. Mestre Jaime, cujo nome de nascimento era Jafuda Cresques, ficou conhecido como "o Judeu da Bússola". Cartógrafo e fabricante de instrumentos náuticos, acredita-se que tenha sido o primeiro a ensinar aos portugueses o uso da bússola, a agulha magnética que, protegida por uma cúpula de vidro e disposta sobre a rosa-dos-ventos, indica a direção do Pólo Norte e ajuda a identificar a posição percorrida pelo navio.
A bússola e o quadrante são muito úteis às navegações, mas a grande novidade a bordo dos nossos navios neste começo de século é o astrolábio. É um disco, metálico ou de madeira, de 360 graus no qual estão representados todos os astros do zodíaco. Desde a Antigüidade era usado em terra firme, para calcular a posição e o movimento dos astros no céu. O que os portugueses fizeram com a ajuda dos sábios estrangeiros foi simplificá-lo e adaptá-lo para uso em alto-mar. O astrolábio permite calcular a latitude pela passagem meridiana do Sol, ou seja, ao meio-dia, quando o astro se encontra no seu ponto mais elevado no céu. Para isso, é necessário enquadrar o raio solar em dois orifícios existentes no aparelho e, em seguida, fazer alguns cálculos matemáticos.
A vantagem tecnológica alcançada pelos portugueses nasceu não propriamente do uso do astrolábio, mas da simplificação desses cálculos. Até pouco tempo atrás, exigia-se para isso certo conhecimento de matemática e astronomia, um grande obstáculo para nossos marujos, dos quais a maioria é rude e iletrada. Outro problema é que os manuais de astronomia e navegação estavam escritos em hebraico, árabe ou latim. A principal tarefa dos conselheiros de dom João II foi reunir todo esse conhecimento, adaptá-lo para a navegação e traduzi-lo para o português, em linguagem acessível aos marujos. O resultado é um manual chamado "Regulamento do astrolábio e do quadrante para determinar cada dia a declinação, o deslocamento do Sol e a posição da estrela Polar". Dividido em cinco partes, ele contém instruções minuciosas sobre como determinar a latitude, com dezessete exemplos práticos em diferentes posições da esfera terrestre. Também ensina a registrar na carta náutica o caminho percorrido pelo navio. A última parte é um calendário de doze meses, sem indicação do ano. Esse calendário informa, para cada dia do ano, a posição do Sol na abóbada celeste.
viagem de Cabral, pelo que se tem notícia, foi a primeira a fazer uso sistemático do astrolábio como instrumento de navegação – embora Vasco da Gama já tivesse testado o aparelho na precursora missão em que descobriu o caminho das Índias, há três anos. Uma prova da utilidade do astrolábio está na carta que Mestre João, o médico do rei e especialista em navegação embarcado na frota de Cabral, escreveu a dom Manuel. Ele conta que, no dia 27 de abril de 1500, segunda-feira, tomou a passagem meridiana do Sol na Terra de Santa Cruz e calculou a latitude local em 17 graus. Diz ter chegado a essa conclusão baseando-se nas "regras do astrolábio", referência ao manual de instruções. Na carta, Mestre João reclama da dificuldade de usar o instrumento em alto-mar, devido ao balanço do navio, mas encerra com um conselho: "Para o mar, melhor é dirigir-se pela altura do Sol, que não por nenhuma estrela; e melhor com o astrolábio, que não com quadrante nem outro nenhum instrumento". É assim que, na prática, vão se somando os conhecimentos tecnológicos que guiam a aventura dos descobrimentos.
O crescimento da indústria naval transformou a paisagem do litoral português. Os dois maiores estaleiros funcionam em Lisboa e na cidade de Lagos, no Algarve, perto de Sagres. São formigueiros humanos, repletos de esqueletos de caravelas e naus em construção, que atraem gente de toda a Europa. O trabalho é dirigido pelos mestres carpinteiros, artesãos altamente especializados, cujo ofício é passado de pai para filho. São eles os encarregados de selecionar a madeira adequada para cada seção do navio. O carvalho para a quilha – a espinha dorsal dos barcos – é trazido do Alentejo, na fronteira com a Espanha. O pinheiro para o casco vem da costa do Atlântico, cujas florestas são reservas protegidas por lei. O lastro – peso necessário para manter o navio estável abaixo da linha-d'água – é feito de rochas. Nas expedições à África e, a partir de agora, também às Índias, as rochas são lançadas ao mar no porto de destino e substituídas pela carga de especiarias, que fazem o papel de lastro na viagem de volta.
Também vital na construção dos navios é a disponibilidade de ferro e de material de vedação, como breu, estopa, alcatrão e cânhamo. A escassez desse tipo de suprimento obriga Portugal a gastar muito dinheiro com importação em outros países. O ferro de melhor qualidade vem das minas bascas, enquanto o cânhamo é produzido nas regiões de Bordéus e da Bretanha, na França. Apesar dos avanços nas técnicas de vedação, a inundação dos navios pela água do mar ainda é um grande problema nas viagens de longa distância. Nossos mestres construtores desenvolveram uma bomba de sucção, feita de madeira com anéis de ferro. Acionada manualmente por um marujo, essa bomba funciona dia e noite nas viagens oceânicas. Só assim é possível manter os barcos à tona.
Outra novidade incorporada à construção naval portuguesa recentemente é o seguro das embarcações. Antes de partir, cada navio contribui com 2% do valor de sua carga para o tesouro real. Em troca, viaja protegido contra perdas em guerras, tempestades e outras catástrofes naturais, e também contra taxas inesperadas em portos estrangeiros.
Uma contribuição decisiva para a aventura portuguesa nos mares foi dada, nos últimos anos, por um sábio judeu de origem espanhola. Abraham-ben-Samuel Zacuto, chamado Abraão Zacuto, é o autor de Almanaque Perpétuo, obra de astrologia que, adaptada ao uso náutico, se tornou fundamental nas expedições do descobrimento. Com 316 páginas e 56 tabelas, o almanaque de Zacuto fornece todas as informações necessárias para a determinação da latitude, incluindo as chamadas declinações, que são as diferentes posições do Sol no zodíaco a cada dia do ano. Redigido originalmente em hebraico, o almanaque foi traduzido para o latim por outro estudioso judeu, José Vizinho, médico do rei dom João II. Hoje, é um manual prático de orientação para nossos pilotos.
Natural de Salamanca, a cidade do saber na Espanha, Zacuto teve de partir depois da expulsão dos judeus pelos reis católicos, em 1492. Imediatamente foi convidado a trabalhar em Portugal como conselheiro de dom João II e, depois, de dom Manuel. Deu instruções pessoais a Vasco da Gama antes da partida da expedição que descobriu o caminho das Índias. Zacuto pertence a uma linhagem de astrólogos que costumavam passar dias e noites observando o céu na tentativa de prever, no movimento dos astros, o destino do ser humano. Hoje, com o avanço da pesquisa científica, a astrologia vai sendo relegada ao terreno das superstições, pelo menos entre os ilustrados. Sem ela, no entanto, a humanidade não teria acumulado tantos conhecimentos sobre os astros, de vital importância para as navegações portuguesas.
TRATADO DE TORDESILHAS GARANTE A PORTUGAL PLENOS
DIREITOS SOBRE A TERRA DESCOBERTA POR CABRAL
A Terra de Santa Cruz é nossa. Tudo graças ao saudoso rei dom João II, conhecido como "Príncipe Perfeito", que governou o país de 1481 até sua morte, há seis anos, em 1495, em circunstâncias misteriosas. Com uma visão geopolítica à frente de seu tempo e grande habilidade diplomática, foi ele quem bateu o pé, nas conversações com a Espanha, para estender, a nosso favor, a linha divisória que definiu as áreas de influência de portugueses e castelhanos no vasto mundo ainda em grande parte por descobrir – exatamente a 370 léguas a ocidente do Arquipélago de Cabo Verde. O Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494, reza que as terras situadas a oeste da linha pertencem aos espanhóis e as que estão a leste são de Portugal. A terra descoberta pela expedição comandada por Pedro Álvares Cabral está nesse último caso. Não fosse a persistência de dom João II, o acordo teria sido assinado nos termos propostos pelos reis Isabel e Fernando – com o meridiano a apenas 100 léguas dos Açores ou de Cabo Verde – e neste momento teríamos de nosso apenas o mar. Negociado diretamente entre Portugal e Espanha, o Tratado de Tordesilhas é o responsável pela paz entre os dois países, que estava ameaçada desde que se tornou necessário dividir o mundo como uma laranja.
Durante toda a década de 80, a grande questão foi em que sentido deveria ser passada a faca. Se no horizontal, como queriam os portugueses, ou no vertical, reivindicação dos espanhóis. O Tratado de Alcáçovas-Toledo, assinado em 1479-80, refletia, de certa forma, o desejo de Portugal. Pelo acordo inicial, pertenceriam à Espanha todas as terras encontradas ao norte das Ilhas Canárias (veja os mapas acima). Foi o primeiro tratado do gênero que regulamentava a posse de terras ainda não descobertas. A Portugal interessava basicamente garantir direitos sobre a parte sul do Mar Oceano, na presunção, que se revelou acertada, de que por ali se conseguiria a passagem para as Índias.
A abertura dessa rota de comércio tem sido a prioridade de Portugal desde os tempos do infante dom Henrique. Nos anos 80 estudavam-se duas possibilidades de chegar às Índias. Uma, pelo sul, contornando a África. A outra, navegando em direção ao poente, contornando o mundo. Ao chegar ao Cabo da Boa Esperança, em 1488, o heróico Bartolomeu Dias convenceu dom João II de que a alternativa mais rápida era a primeira. No dia em que o navegador, em audiência com o rei, lhe explicou as vantagens dessa rota, desenhando o caminho numa carta náutica, estava no palácio outro grande marinheiro, o defensor mais ardoroso da teoria contrária: o genovês Cristóvão Colombo. A partir do momento em que dom João II se definiu pelo projeto de Bartolomeu Dias, Colombo abandonou Portugal. Foi para a Espanha, que financiou seu projeto. Em 1492, navegando na direção proposta por ele, descobriu as ilhas Fernandina, Isabela, Juana e Hispaniola. Contra todas as evidências, acreditava ter chegado ao rico Oriente, e disso convenceu os monarcas espanhóis, que passaram a empenhar seus consideráveis esforços em garantir todas as terras da banda ocidental do Mar Oceano.
O descobrimento de Colombo provocou uma reviravolta na divisão do mundo que havia sido feita até então. Por um motivo simples: pelo Tratado de Alcáçovas, em vigor até aquele momento, as ilhas estavam em território português, já que se situavam ao sul das Canárias. Consciente disso, dom João II reivindicou a posse das terras. Os reis da Espanha partiram para o contra-ataque usando a arma que tinham: sua influência no Vaticano. O papa Alexandre VI, espanhol de nascimento, deve favores ao rei Fernando de Aragão. A pedido dele e de sua intrépida mulher, a rainha Isabel de Castela, a grande patrocinadora de Colombo, o papa emitiu dois documentos, as chamadas bulas Inter-Coetera I e II. Elas dividiam as áreas de influência, com um claro favorecimento a seus conterrâneos (a partilha provocou o sarcástico comentário do rei Luís XII, da França: "Em que artigo de seu testamento Adão repartiu a Terra entre portugueses e espanhóis?" A segunda bula alexandrina estabelecia uma linha vertical a 100 léguas das Canárias como nova demarcação divisória do mundo.
Dom João II, mais uma vez, não se dobrou. Continuou sua estratégia de expressar o descontentamento de Portugal. Preparou-se ostensivamente para uma possível guerra e se aproximou da França, em disputa com a Espanha. De tanto pressionar, a Espanha aceitou negociações diretas, retomadas em 1494, quando dom João II fez sua reivindicação: concordava com a substituição da linha horizontal pela vertical, desde que esta se situasse a 370 léguas do Arquipélago de Cabo Verde. A justificativa: devido à impossibilidade de contornar a África em direção das Índias fazendo navegação costeira, era necessário um espaço de manobra para as naus. A Espanha acabou assinando o tratado graças a algumas compensações dadas por Portugal e ao relatório de Cristóvão Colombo, que voltava de sua segunda viagem asseverando que dificilmente haveria novas terras no espaço entre 100 e 370 léguas. Assim, o tratado foi assinado na cidade espanhola de Tordesilhas, em 7 de junho. É possível que ainda haja terras por descobrir do lado espanhol da divisão, mas por enquanto Tordesilhas joga a favor de Portugal.
ão é caridoso apontar as fraquezas de quem passa por um mau pedaço, como acontece atualmente com Cristóvão Colombo, o orgulhoso almirante do Mar Oceano. Mas o fato é que o descobrimento feito por Pedro Álvares Cabral fornece mais uma prova de que o navegante genovês está errado: as ilhas que desbravou, sob o patrocínio da rainha Isabel de Castela, não só não têm nada a ver com as Índias como parecem ser parte de todo um novo mundo, desconhecido pelos europeus. Cumpre reconhecer os méritos de Colombo, o primeiro a sair a mar aberto nove anos atrás e, mais impressionante, voltar em segurança. Valente, teimoso e competente como poucos, ele já repetiu mais duas vezes a viagem e iniciou um processo de assentamentos no território. Persiste, no entanto, na obsessão de comprovar que as ilhas, em muito semelhantes à Terra de Santa Cruz, constituem alguma parte do Oriente descrito há dois séculos pelo aventureiro veneziano Marco Polo.
A situação delicada vivida no momento por Colombo tem menos a ver com seu engano e mais com as confusões ocorridas nos novos territórios abarcados pela bandeira espanhola. Há menos de um ano, o pioneiro desbravador do Mar Oceano, acompanhado pelos dois irmãos, foi posto a ferros e levado preso para Sevilha. A rainha Isabel já mandou soltá-lo, mas Colombo não conseguiu recuperar o posto de governador e vice-rei das Índias – sim, os espanhóis insistem na designação –, e é difícil que isso venha a acontecer. Sua administração foi um desastre. Esperando riquezas prodigiosas, os espanhóis levados para iniciar o assentamento enfrentaram doenças, fome e revoltas dos nativos, impiedosamente massacrados. Afundaram na desordem e na rebelião. Quando o interventor Francisco de Bobadilha, enviado para pôr ordem no caos, chegou a São Domingos, pendiam da forca sete corpos de espanhóis amotinados contra Colombo. O descobridor do novo mundo, preso por Bobadilha, saiu de lá debaixo de insultos. "Almirante dos mosquitos", foi uma das ofensas mais brandas que ouviu.
Parte do tempo que deveria dedicar a controlar os temperamentais espanhóis foi dedicada pelo almirante a tentar comprovar a absurda teoria de que a maior da ilhas – chamada de Colba – da região é "o começo das Índias". Depois de quase circundá-la completamente, ele fez todos a bordo dos três navios jurar, perante um notário, que a ilha não era ilha, sob pena de multar em 10 000 maravedis e mandar cortar a língua de quem dissesse o contrário.
A obsessão de Colombo é compreensível. Durante boa parte de sua vida, ele alimentou o ambiciosíssimo projeto de chegar às Índias navegando da Europa na direção oeste. Ele se baseava nos relatos dos antigos e nas cartas do respeitado cosmógrafo florentino Paolo Toscanelli, para quem a distância marítima entre a Europa e o Extremo Oriente era relativamente pequena. Quem poderia supor que, no caminho, existia todo esse novo mundo? Apesar da lógica aparente, não convenceu os portugueses, entre os quais aprendeu as artes da navegação, além de ler e escrever. Tentou vender o projeto aos reis da Inglaterra e da França, sem sucesso. A muito custo, convenceu finalmente a rainha Isabel, que se sentia pressionada pelas conquistas marítimas dos parentes e rivais portugueses. No dia 3 de agosto de 1492, ele partiu, com duas caravelas, uma nau, autoconfiança inabalável e a sorte, que sempre o bafejou, dos ventos a favor. Passou dois meses no mar – um recorde nunca antes alcançado. Em 12 de outubro, às 2 horas da madrugada, um vigia gritou "Tierra!" e viram a primeira ilha, batizada de São Salvador.
Colombo voltou dessa primeira viagem coberto de glórias, que nunca mais se repetiram. Com pouco retorno financeiro até agora, as ilhas deixaram de ser novidade. O almirante, porém, não desiste. Na última e desastrosa viagem, pisou em um trecho de litoral onde nem ele, com toda a fé de ter achado um caminho para as Índias, pôde deixar de ver traços de um continente. Mas, se não são as Índias, que pedaço de terra é esse? O Paraíso Terrestre, concluiu o pio navegante. Como se sabe, nenhum ser vivo pode visitá-lo. Ao descrever seu encontro com o Éden, ficou tão exaltado que despertou dúvidas quanto a seu estado mental. Atualmente, privado do prestígio de outrora, busca, com a costumeira tenacidade, formar a frota da quarta viagem. Para onde? Para um grupo de ilhas desconhecidas nos confins do oceano, suspira a corte espanhola. Para as Índias, teima, impávido, o almirante do Mar Oceano.
Seja Bem Vindo ao seu Blog
Mostrando postagens com marcador História. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador História. Mostrar todas as postagens
segunda-feira, dezembro 20, 2010
História.:.HISTORIOGRAFIA E DEMOCRACIA RACIAL NO BRASIL
HISTORIOGRAFIA E DEMOCRACIA RACIAL NO BRASIL
O tema escravidão no Brasil passou a ser estudado de maneira mais enfática a partir da década de 1930. Desse período até a década de 1980, pode-se observar uma grande quantidade de pesquisadores abordando o tema, de maneira distinta, colocando o escravo sob sua ótica ideológica.
Com “Casa Grande & Senzala”, Gilberto Freyre lança um novo olhar sobre o negro na historiografia brasileira. A partir de uma análise minuciosa da formação da sociedade brasileira, descreve como se dava a relação senhor-escravo dentro do engenho, ressaltando a benevolência e a solidariedade que permeavam nesse universo, criando, dessa forma, o mito da democracia racial. Para sustentar sua tese, Freyre afirma que brancos e negros eram “duas metades confraternizadas, que se enriquecem mutuamente de valores e experiências diversas”, escravos domésticos eram tratados como familiares, pessoas da casa, parentes pobres; sentavam-se à mesa, passeavam com os senhores. Analisa a presença negra na história do Brasil, como esteio indispensável para a colonização portuguesa.
“Os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantada foram um elemento ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na colonização do Brasil; degradados apenas pela sua condição de escravos. Longe de terem sido apenas animais de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura, desempenharam uma função civilizadora. Foram a mão direita da formação agrária brasileira, os índios, e sob certo ponto de vista, os portugueses, a mão esquerda.”
A sua tese principal sobre a democracia racial é ainda a questão mais lembrada sobre seus escritos. Mesmo porque esta tese foi adotada pelo Estado Novo como forma de projetar para o mundo a idéia de um Brasil que não tinha em seu passado escravocrata um problema para seu desenvolvimento, pois a mistura das raças passou a ser um ponto positivo para a formação da nação.
Uma das partes mais importantes do debate diz respeito também à inovação da metodologia de Freyre que passou a freqüentar todas as áreas da casa para descrever a vida cotidiana do brasileiro.
A idéia de escravidão patriarcal foi modernizada pelo historiador americano, Eugene Genovese, que faz um estudo sobre a escravidão nos Estados Unidos. O aspecto central de sua obra, é a da hegemonia dos senhores sobre os escravos, conceito extraído do pensador marxista Antonio Gramsci, o qual significa a direção consensual de uma classe dominante sobre a aceitação de uma classe subalterna. Isso se faria pela lei, pela religião, sobretudo, pelo tratamento patriarcal que permitia aos escravos obter concessões dentro da sociedade escravista.
No início da década de 60, surge na chamada Escola Paulista, formada por Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Emília Viotti da Costa e outros, uma revisão no tema escravidão, que combatia o mito da democracia racial defendido por Freyre, questionando as relações doces e benevolentes entre senhores e escravos, denunciando os horrores da escravidão em nosso país. Concluíram que as condições extremamente duras da vida sob o cativeiro haviam destituído os negros das habilidades necessárias para serem bem sucedidos na vida em liberdade. As condições desfavoráveis da vida em cativeiro teriam desprovido os escravos da capacidade de pensar o mundo a partir de categorias e significados sociais que não aqueles instituídos pelos próprios senhores, ocorrendo assim, uma “coisificação social” dos negros sob a escravidão. A violência exercida pelo sistema escravista chegava a fazer com que os negros concebessem a si mesmos como não-homens, como criaturas inferiores, como “coisas”, daí a denominação “teoria do escravo-coisa”.
Para Florestan Fernandes, o dilema racial brasileiro difere radicalmente desta visão centrada principalmente nos aspectos de ordem cultural da nossa sociabilidade, os quais supostamente indicariam a existência de uma democracia racial nos trópicos.
Ao tomar como referencial de análise a situação dos negros e mulatos no momento imediatamente posterior à abolição da escravatura, Florestan Fernandes infere que as benesses de ordem cultural tão amplamente ressaltadas por autores culturalistas, como Gilberto Freyre, - para quem todo brasileiro traz na alma, quando não no corpo também, a influência do africano na ternura, na música e na culinária, - contribuíam para camuflar a desintegração social do negro brasileiro que, em meio à evolução da sociedade e seus ciclos econômicos, ficara excluído do novo sistema de relações de trabalho e destituído de quaisquer iniciativas de ressocialização à nova ordem social baseada no trabalho livre.
Os revisionistas da década de 60 viam uma saída para os escravos: a resistência aberta, a rebeldia, que consistia na única maneira de se afirmarem como pessoas humanas, como sujeitos de sua própria história. Para Clóvis Moura, só os escravos que fugiam e participavam de quilombos, eram escravos que combatiam o regime escravista. Por outro lado, aqueles que permaneciam no trabalho, que não fugiam para os quilombos, que não se insurgiam, consolidaram o regime escravista.
A historiadora Emília Viotti, tentando compreender a criação do mito da democracia racial, sem deixar de criticá-lo, afirma que os brancos beneficiaram-se com o mito, mas também é verdade que os negros beneficiaram-se igualmente, embora de uma maneira mais limitada e contraditória. A negação do preconceito; a crença no processo de branqueamento; a identificação do mulato como uma categoria especial; a aceitação de indivíduos negros entre as camadas da elite branca tornou mais difícil para o negro desenvolver um senso de identidade como grupo. Por outro lado, criaram oportunidades para alguns negros ou mulatos ascenderem na escala social. Embora socialmente móveis, os negros tinham, entretanto, de pagar um preço pela sua mobilidade. Tinham que fingir que eram brancos. Negros de alma branca. Ela enfatiza que esta mobilidade social seria, na verdade, a instituição do clientelismo e da patronagem.
Segundo a ótica de Fernando Henrique Cardoso, que aborda as condições de existência social do negro no Brasil antes e depois da abolição, o escravo que era visto como simples instrumento de trabalho e possuidor de uma consciência passiva, na transição da sociedade de castas para a sociedade de classes, passava por um processo de alienação pra poder assim integrar-se à sociedade da época, denotando que, mesmo após a abolição, os negros continuavam carentes de consciência da sua condição política e social. Os escravos eram, nas palavras de Fernando Henrique, testemunhas mudas da história.
Os trabalhos da Escola Paulista influenciaram, praticamente, todos os estudos posteriores sobre o tema e marcaram a formação de muitos militantes do movimento negro.
Os anos 80 marcaram um revigoramento da produção historiográfica sobre o tema escravidão e abolição no Brasil. Inúmeras teses, tanto no contexto nacional como estrangeiro, contribuíram pra uma nova abordagem da história, ousando questionar algumas verdades já estabelecidas, principalmente as posições teóricas defendidas por estudiosos que publicaram seus livros nas décadas de 60 e 70.
Baseados em trabalhos de investigação empírica, os historiadores da década de 80 passaram a ver o negro como um agente ativo na sociedade escravista. Consideravam como limitados os estudos que vêem a escravidão como um sistema absolutamente rígido, quase um campo de concentração, em que o escravo aparece sempre como vítima, como também, os estudos que supervalorizam o heroísmo da rebeldia. Para estes, o sistema escravista – como qualquer outro – não poderia viabilizar-se apenas pela força.
Para João José Reis e Eduardo Silva, dois dos historiadores da referida década, a historiografia até então predominante havia ignorado os espaços de indefinição nos quais percebe-se as barganhas e os arranjos cotidianos empreendidos pelos cativos, e mesmo a percepção de como entendiam o seu viver, muito mais do que o mero sobreviver. Os escravos não foram vítimas nem heróis o tempo todo. O escravo aparentemente acomodado e submisso de um dia, poderia tornar-se o rebelde do dia seguinte, dependendo das circunstâncias. Embora conclua ter havido, muitas vezes, negociações no sentido de minorar a rigidez da escravidão, nega que tais negociações tenham a ver com a vigência de relações harmoniosas e idílicas entre senhores e escravos, como afirmam alguns. Destaca que, ao lado da sempre presente violência, havia um espaço social que se tecia tanto de barganhas quanto de conflitos. Na introdução do livro “Liberdade por um fio”, João Reis declara:
“Onde houve escravidão houve resistência. E de vários tipos. Mesmo sob a ameaça do chicote, o escravo negociava espaços de autonomia com os senhores ou fazia corpo mole no trabalho, quebrava ferramentas, incendiava plantações, agredia senhores e feitores, rebelava-se individual e coletivamente. (...)”
Em Negociação e Conflito, João Reis e Eduardo Silva concentram seus esforços na recuperação dos escravos, que na medida de suas possibilidades, resistiram a se tornar meros objetos de um sistema que lhes era exterior. Dessa forma, estes sujeitos inventaram o seu viver, seja através da negociação mais imediata, corriqueira e mesmo pacífica; seja através do conflito individual ou coletivo, que se corporificava nas insurreições e quilombos.
Recentemente, no início da década de 90, surge no cenário da historiografia brasileira, o polêmico historiador Jacob Gorender, com sua obra provocativa “A Escravidão Reabilitada”.
O autor questiona avidamente os trabalhos produzidos na década de 80, disparando farpas no que ele chama de “Escola Unicampista”. Vê nessa escola, a tentativa de ressuscitar o mito da democracia racial, a afirmação de uma escravidão benevolente e mascara, mais uma vez, o aspecto violento desta. Afirma terem esses “historiadores de status universitário, imprimido às suas pesquisas um direcionamento ideológico...”.
Gorender analisa e critica as obras que enfatizam as brechas nas relações senhor-escravo, as quais possibilitam uma vida menos oprimida para os escravos. Embora admita ter havido certa elasticidade nas relações, afirma terem sido em casos raros, do contrário, o próprio caráter da escravidão seria afetado e mudado. Assim, nada “invalidava a objetivação do escravo enquanto mercadoria e a instabilidade de qualquer melhora individual porventura alcançada”. Na sociedade colonial escravista, o meio de dominação fundamental não é o consenso e sim a violência sistematizada, a qual mantém a submissão dos escravos no cotidiano.
Todavia, admite Gorender, o escravo não aceitava a escravidão. Era obrigado a adaptar-se a ela. Demonstração disso, eram não só as fugas para os quilombos, das insurreições, mas também na vida cotidiana, como mau trabalhador, como sabotador do trabalho, exigindo assim, um alto custo de vigilância. “O escravo era um sujeito, tinha subjetividade, podia reagir ao senhor, seja pela insubordinação, pela astúcia, ou pela violência, ou mesmo em alguns casos – pela negociação. Isso não deixava de fazer com que, então socialmente, ele fosse uma coisa”.
Diante do exposto, podemos observar que a historiografia brasileira por muito tempo encarou a escravidão de forma bastante rígida. O escravo foi visto alternadamente como herói ou vítima e, sempre como objeto, de seus senhores, de seus próprios impulsos, ou ainda a história que se propunha estuda-lo.
Recentemente, na historiografia brasileira, vem ganhando corpo uma abordagem que vê a escravidão, sobretudo da perspectiva do escravo, um escravo real, não reificado nem mitificado, resgatando assim as pequenas e grandes conquistas do dia-a-dia daqueles que, inversamente ao que até hoje se supôs, resistiam a se tornar meras engrenagens do sistema que os escravizara.
BIBLIOGRAFIA
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 34 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.
GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. LPH. Revista de História. V. 3. N. 1. 1992.
LARA, Silva Hunold. Escravidão no Brasil: Um balanço historiográfico. Revista de História. V. 3. N. 1. 1992.
MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. Série Fundamentos. São Paulo: Editora Ática, 1988.
SILVA, Eduardo. REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
REIS, João José. GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999.
O tema escravidão no Brasil passou a ser estudado de maneira mais enfática a partir da década de 1930. Desse período até a década de 1980, pode-se observar uma grande quantidade de pesquisadores abordando o tema, de maneira distinta, colocando o escravo sob sua ótica ideológica.
Com “Casa Grande & Senzala”, Gilberto Freyre lança um novo olhar sobre o negro na historiografia brasileira. A partir de uma análise minuciosa da formação da sociedade brasileira, descreve como se dava a relação senhor-escravo dentro do engenho, ressaltando a benevolência e a solidariedade que permeavam nesse universo, criando, dessa forma, o mito da democracia racial. Para sustentar sua tese, Freyre afirma que brancos e negros eram “duas metades confraternizadas, que se enriquecem mutuamente de valores e experiências diversas”, escravos domésticos eram tratados como familiares, pessoas da casa, parentes pobres; sentavam-se à mesa, passeavam com os senhores. Analisa a presença negra na história do Brasil, como esteio indispensável para a colonização portuguesa.
“Os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantada foram um elemento ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na colonização do Brasil; degradados apenas pela sua condição de escravos. Longe de terem sido apenas animais de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura, desempenharam uma função civilizadora. Foram a mão direita da formação agrária brasileira, os índios, e sob certo ponto de vista, os portugueses, a mão esquerda.”
A sua tese principal sobre a democracia racial é ainda a questão mais lembrada sobre seus escritos. Mesmo porque esta tese foi adotada pelo Estado Novo como forma de projetar para o mundo a idéia de um Brasil que não tinha em seu passado escravocrata um problema para seu desenvolvimento, pois a mistura das raças passou a ser um ponto positivo para a formação da nação.
Uma das partes mais importantes do debate diz respeito também à inovação da metodologia de Freyre que passou a freqüentar todas as áreas da casa para descrever a vida cotidiana do brasileiro.
A idéia de escravidão patriarcal foi modernizada pelo historiador americano, Eugene Genovese, que faz um estudo sobre a escravidão nos Estados Unidos. O aspecto central de sua obra, é a da hegemonia dos senhores sobre os escravos, conceito extraído do pensador marxista Antonio Gramsci, o qual significa a direção consensual de uma classe dominante sobre a aceitação de uma classe subalterna. Isso se faria pela lei, pela religião, sobretudo, pelo tratamento patriarcal que permitia aos escravos obter concessões dentro da sociedade escravista.
No início da década de 60, surge na chamada Escola Paulista, formada por Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Emília Viotti da Costa e outros, uma revisão no tema escravidão, que combatia o mito da democracia racial defendido por Freyre, questionando as relações doces e benevolentes entre senhores e escravos, denunciando os horrores da escravidão em nosso país. Concluíram que as condições extremamente duras da vida sob o cativeiro haviam destituído os negros das habilidades necessárias para serem bem sucedidos na vida em liberdade. As condições desfavoráveis da vida em cativeiro teriam desprovido os escravos da capacidade de pensar o mundo a partir de categorias e significados sociais que não aqueles instituídos pelos próprios senhores, ocorrendo assim, uma “coisificação social” dos negros sob a escravidão. A violência exercida pelo sistema escravista chegava a fazer com que os negros concebessem a si mesmos como não-homens, como criaturas inferiores, como “coisas”, daí a denominação “teoria do escravo-coisa”.
Para Florestan Fernandes, o dilema racial brasileiro difere radicalmente desta visão centrada principalmente nos aspectos de ordem cultural da nossa sociabilidade, os quais supostamente indicariam a existência de uma democracia racial nos trópicos.
Ao tomar como referencial de análise a situação dos negros e mulatos no momento imediatamente posterior à abolição da escravatura, Florestan Fernandes infere que as benesses de ordem cultural tão amplamente ressaltadas por autores culturalistas, como Gilberto Freyre, - para quem todo brasileiro traz na alma, quando não no corpo também, a influência do africano na ternura, na música e na culinária, - contribuíam para camuflar a desintegração social do negro brasileiro que, em meio à evolução da sociedade e seus ciclos econômicos, ficara excluído do novo sistema de relações de trabalho e destituído de quaisquer iniciativas de ressocialização à nova ordem social baseada no trabalho livre.
Os revisionistas da década de 60 viam uma saída para os escravos: a resistência aberta, a rebeldia, que consistia na única maneira de se afirmarem como pessoas humanas, como sujeitos de sua própria história. Para Clóvis Moura, só os escravos que fugiam e participavam de quilombos, eram escravos que combatiam o regime escravista. Por outro lado, aqueles que permaneciam no trabalho, que não fugiam para os quilombos, que não se insurgiam, consolidaram o regime escravista.
A historiadora Emília Viotti, tentando compreender a criação do mito da democracia racial, sem deixar de criticá-lo, afirma que os brancos beneficiaram-se com o mito, mas também é verdade que os negros beneficiaram-se igualmente, embora de uma maneira mais limitada e contraditória. A negação do preconceito; a crença no processo de branqueamento; a identificação do mulato como uma categoria especial; a aceitação de indivíduos negros entre as camadas da elite branca tornou mais difícil para o negro desenvolver um senso de identidade como grupo. Por outro lado, criaram oportunidades para alguns negros ou mulatos ascenderem na escala social. Embora socialmente móveis, os negros tinham, entretanto, de pagar um preço pela sua mobilidade. Tinham que fingir que eram brancos. Negros de alma branca. Ela enfatiza que esta mobilidade social seria, na verdade, a instituição do clientelismo e da patronagem.
Segundo a ótica de Fernando Henrique Cardoso, que aborda as condições de existência social do negro no Brasil antes e depois da abolição, o escravo que era visto como simples instrumento de trabalho e possuidor de uma consciência passiva, na transição da sociedade de castas para a sociedade de classes, passava por um processo de alienação pra poder assim integrar-se à sociedade da época, denotando que, mesmo após a abolição, os negros continuavam carentes de consciência da sua condição política e social. Os escravos eram, nas palavras de Fernando Henrique, testemunhas mudas da história.
Os trabalhos da Escola Paulista influenciaram, praticamente, todos os estudos posteriores sobre o tema e marcaram a formação de muitos militantes do movimento negro.
Os anos 80 marcaram um revigoramento da produção historiográfica sobre o tema escravidão e abolição no Brasil. Inúmeras teses, tanto no contexto nacional como estrangeiro, contribuíram pra uma nova abordagem da história, ousando questionar algumas verdades já estabelecidas, principalmente as posições teóricas defendidas por estudiosos que publicaram seus livros nas décadas de 60 e 70.
Baseados em trabalhos de investigação empírica, os historiadores da década de 80 passaram a ver o negro como um agente ativo na sociedade escravista. Consideravam como limitados os estudos que vêem a escravidão como um sistema absolutamente rígido, quase um campo de concentração, em que o escravo aparece sempre como vítima, como também, os estudos que supervalorizam o heroísmo da rebeldia. Para estes, o sistema escravista – como qualquer outro – não poderia viabilizar-se apenas pela força.
Para João José Reis e Eduardo Silva, dois dos historiadores da referida década, a historiografia até então predominante havia ignorado os espaços de indefinição nos quais percebe-se as barganhas e os arranjos cotidianos empreendidos pelos cativos, e mesmo a percepção de como entendiam o seu viver, muito mais do que o mero sobreviver. Os escravos não foram vítimas nem heróis o tempo todo. O escravo aparentemente acomodado e submisso de um dia, poderia tornar-se o rebelde do dia seguinte, dependendo das circunstâncias. Embora conclua ter havido, muitas vezes, negociações no sentido de minorar a rigidez da escravidão, nega que tais negociações tenham a ver com a vigência de relações harmoniosas e idílicas entre senhores e escravos, como afirmam alguns. Destaca que, ao lado da sempre presente violência, havia um espaço social que se tecia tanto de barganhas quanto de conflitos. Na introdução do livro “Liberdade por um fio”, João Reis declara:
“Onde houve escravidão houve resistência. E de vários tipos. Mesmo sob a ameaça do chicote, o escravo negociava espaços de autonomia com os senhores ou fazia corpo mole no trabalho, quebrava ferramentas, incendiava plantações, agredia senhores e feitores, rebelava-se individual e coletivamente. (...)”
Em Negociação e Conflito, João Reis e Eduardo Silva concentram seus esforços na recuperação dos escravos, que na medida de suas possibilidades, resistiram a se tornar meros objetos de um sistema que lhes era exterior. Dessa forma, estes sujeitos inventaram o seu viver, seja através da negociação mais imediata, corriqueira e mesmo pacífica; seja através do conflito individual ou coletivo, que se corporificava nas insurreições e quilombos.
Recentemente, no início da década de 90, surge no cenário da historiografia brasileira, o polêmico historiador Jacob Gorender, com sua obra provocativa “A Escravidão Reabilitada”.
O autor questiona avidamente os trabalhos produzidos na década de 80, disparando farpas no que ele chama de “Escola Unicampista”. Vê nessa escola, a tentativa de ressuscitar o mito da democracia racial, a afirmação de uma escravidão benevolente e mascara, mais uma vez, o aspecto violento desta. Afirma terem esses “historiadores de status universitário, imprimido às suas pesquisas um direcionamento ideológico...”.
Gorender analisa e critica as obras que enfatizam as brechas nas relações senhor-escravo, as quais possibilitam uma vida menos oprimida para os escravos. Embora admita ter havido certa elasticidade nas relações, afirma terem sido em casos raros, do contrário, o próprio caráter da escravidão seria afetado e mudado. Assim, nada “invalidava a objetivação do escravo enquanto mercadoria e a instabilidade de qualquer melhora individual porventura alcançada”. Na sociedade colonial escravista, o meio de dominação fundamental não é o consenso e sim a violência sistematizada, a qual mantém a submissão dos escravos no cotidiano.
Todavia, admite Gorender, o escravo não aceitava a escravidão. Era obrigado a adaptar-se a ela. Demonstração disso, eram não só as fugas para os quilombos, das insurreições, mas também na vida cotidiana, como mau trabalhador, como sabotador do trabalho, exigindo assim, um alto custo de vigilância. “O escravo era um sujeito, tinha subjetividade, podia reagir ao senhor, seja pela insubordinação, pela astúcia, ou pela violência, ou mesmo em alguns casos – pela negociação. Isso não deixava de fazer com que, então socialmente, ele fosse uma coisa”.
Diante do exposto, podemos observar que a historiografia brasileira por muito tempo encarou a escravidão de forma bastante rígida. O escravo foi visto alternadamente como herói ou vítima e, sempre como objeto, de seus senhores, de seus próprios impulsos, ou ainda a história que se propunha estuda-lo.
Recentemente, na historiografia brasileira, vem ganhando corpo uma abordagem que vê a escravidão, sobretudo da perspectiva do escravo, um escravo real, não reificado nem mitificado, resgatando assim as pequenas e grandes conquistas do dia-a-dia daqueles que, inversamente ao que até hoje se supôs, resistiam a se tornar meras engrenagens do sistema que os escravizara.
BIBLIOGRAFIA
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 34 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.
GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. LPH. Revista de História. V. 3. N. 1. 1992.
LARA, Silva Hunold. Escravidão no Brasil: Um balanço historiográfico. Revista de História. V. 3. N. 1. 1992.
MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. Série Fundamentos. São Paulo: Editora Ática, 1988.
SILVA, Eduardo. REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
REIS, João José. GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999.
Posted by
Júlio Barbosa
às
dezembro 20, 2010
0
comentários
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no XCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
História
História.:.Artur da Costa e Silva
Artur da Costa e Silva, A condição de militar mais antigo entre os oficiais que derrubaram João Goulart permitiu ao marechal Costa e Silva assumir o Ministério da Guerra, depois do movimento de 31 de março de 1964, e reivindicar, mais tarde, a presidência da república.
Artur da Costa e Silva nasceu em Taquari RS, em 3 de outubro de 1902. Aluno brilhante do Colégio Militar de Porto Alegre, transferiu-se, em 1918, para a Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro. Aspirante em 1921, foi promovido a segundo-tenente em 1922, quando tomou parte na tentativa de levante do 1o Regimento de Infantaria da Vila Militar, em 5 de julho. Participou das revoluções de 1922 e 1930 e, como capitão, comandou uma companhia durante a revolução de 1932. Foi adido militar na Argentina e chegou ao generalato em 1952.
Após a derrubada do presidente João Goulart, chefiou o comando supremo da revolução, integrado também pelo almirante Augusto Hamann Rademaker Grünewald, representante da Marinha, e pelo brigadeiro Francisco Correia de Melo, da Aeronáutica. Nesse período, promoveu a edição, em 9 de abril de 1964, do Ato Institucional no 1, que suspendeu a vigência da constituição, alterou o processo de elaboração legislativa e autorizou o comando da revolução a aplicar punições sumárias ao longo de três meses. Ocorreram, então, afastamentos nas fileiras das forças armadas e dos partidos políticos, cassando-se mandatos e suspendendo-se direitos políticos por dez anos de antigos presidentes, de governadores, de membros do Congresso, das assembléias e câmaras municipais, além de outras pessoas.
Durante o governo Castelo Branco, Costa e Silva ocupou o Ministério da Guerra até a homologação de sua candidatura à presidência da república, em julho de 1966. Foi presidente de 15 de março de 1967 a 31 de agosto de 1969. Adotou uma política econômico-financeira menos rígida que a do governo anterior, com a abertura de créditos a empresas, taxa flexível de câmbio para estimular o comércio exterior e reexame da política salarial. Tudo isso redundou na ativação da economia, ameaçada de recesso após três anos de esforço antiinflacionário. O Plano Nacional de Comunicações modernizou essa área, e a política de transportes foi dinamizada com a abertura e pavimentação de novas estradas, o início da construção da ponte Rio-Niterói e os primeiros estudos para aproveitamento das vias fluviais.
Em seu mandato o setor da educação foi fonte de inquietação estudantil, notadamente no Rio de Janeiro. A situação política agravou-se a partir de agosto, quando, às vésperas do dia da independência, o deputado Márcio Moreira Alves, da tribuna da Câmara dos Deputados, concitou o país a não se solidarizar com as comemorações. O marechal Costa e Silva pediu licença à Câmara para processar o deputado. Negada esta, o governo tomou uma série de medidas restritivas, que culminaram com a outorga, a 13 de dezembro de 1968, do Ato Institucional no 5, que colocou o Congresso em recesso e atribuiu ao executivo poderes mais amplos, entre eles o de governar mediante decretos.
Posteriormente, Costa e Silva procurou um ponto de equilíbrio. Encomendou ao vice-presidente Pedro Aleixo a elaboração de uma emenda constitucional que permitisse reabrir o Congresso. Concordou-se que o presidente publicaria o projeto definitivo no dia 30 de agosto, enviando-o ao Congresso, que se reuniria a 8 de setembro. O AI-5 perderia assim sua razão de ser no dia 7 de setembro de 1969, mas, a 26 de agosto, o marechal manifestou os primeiros sintomas de uma trombose cerebral, e no dia 31 os ministros militares -- Rademaker, da Marinha; general Aurélio Lira Tavares, do Exército; e brigadeiro Márcio de Sousa e Melo, da Aeronáutica -- comunicaram a Pedro Aleixo que não havia condições para lhe entregar o governo. Organizados em junta militar, sob a presidência de Rademaker, os três ministros assumiram o poder, exercendo-o até 31 de outubro, quando o passaram ao general Emílio Garrastazu Médici. O marechal Costa e Silva faleceu no palácio das Laranjeiras, Rio de Janeiro, em 17 de dezembro de 1969.
Artur da Costa e Silva nasceu em Taquari RS, em 3 de outubro de 1902. Aluno brilhante do Colégio Militar de Porto Alegre, transferiu-se, em 1918, para a Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro. Aspirante em 1921, foi promovido a segundo-tenente em 1922, quando tomou parte na tentativa de levante do 1o Regimento de Infantaria da Vila Militar, em 5 de julho. Participou das revoluções de 1922 e 1930 e, como capitão, comandou uma companhia durante a revolução de 1932. Foi adido militar na Argentina e chegou ao generalato em 1952.
Após a derrubada do presidente João Goulart, chefiou o comando supremo da revolução, integrado também pelo almirante Augusto Hamann Rademaker Grünewald, representante da Marinha, e pelo brigadeiro Francisco Correia de Melo, da Aeronáutica. Nesse período, promoveu a edição, em 9 de abril de 1964, do Ato Institucional no 1, que suspendeu a vigência da constituição, alterou o processo de elaboração legislativa e autorizou o comando da revolução a aplicar punições sumárias ao longo de três meses. Ocorreram, então, afastamentos nas fileiras das forças armadas e dos partidos políticos, cassando-se mandatos e suspendendo-se direitos políticos por dez anos de antigos presidentes, de governadores, de membros do Congresso, das assembléias e câmaras municipais, além de outras pessoas.
Durante o governo Castelo Branco, Costa e Silva ocupou o Ministério da Guerra até a homologação de sua candidatura à presidência da república, em julho de 1966. Foi presidente de 15 de março de 1967 a 31 de agosto de 1969. Adotou uma política econômico-financeira menos rígida que a do governo anterior, com a abertura de créditos a empresas, taxa flexível de câmbio para estimular o comércio exterior e reexame da política salarial. Tudo isso redundou na ativação da economia, ameaçada de recesso após três anos de esforço antiinflacionário. O Plano Nacional de Comunicações modernizou essa área, e a política de transportes foi dinamizada com a abertura e pavimentação de novas estradas, o início da construção da ponte Rio-Niterói e os primeiros estudos para aproveitamento das vias fluviais.
Em seu mandato o setor da educação foi fonte de inquietação estudantil, notadamente no Rio de Janeiro. A situação política agravou-se a partir de agosto, quando, às vésperas do dia da independência, o deputado Márcio Moreira Alves, da tribuna da Câmara dos Deputados, concitou o país a não se solidarizar com as comemorações. O marechal Costa e Silva pediu licença à Câmara para processar o deputado. Negada esta, o governo tomou uma série de medidas restritivas, que culminaram com a outorga, a 13 de dezembro de 1968, do Ato Institucional no 5, que colocou o Congresso em recesso e atribuiu ao executivo poderes mais amplos, entre eles o de governar mediante decretos.
Posteriormente, Costa e Silva procurou um ponto de equilíbrio. Encomendou ao vice-presidente Pedro Aleixo a elaboração de uma emenda constitucional que permitisse reabrir o Congresso. Concordou-se que o presidente publicaria o projeto definitivo no dia 30 de agosto, enviando-o ao Congresso, que se reuniria a 8 de setembro. O AI-5 perderia assim sua razão de ser no dia 7 de setembro de 1969, mas, a 26 de agosto, o marechal manifestou os primeiros sintomas de uma trombose cerebral, e no dia 31 os ministros militares -- Rademaker, da Marinha; general Aurélio Lira Tavares, do Exército; e brigadeiro Márcio de Sousa e Melo, da Aeronáutica -- comunicaram a Pedro Aleixo que não havia condições para lhe entregar o governo. Organizados em junta militar, sob a presidência de Rademaker, os três ministros assumiram o poder, exercendo-o até 31 de outubro, quando o passaram ao general Emílio Garrastazu Médici. O marechal Costa e Silva faleceu no palácio das Laranjeiras, Rio de Janeiro, em 17 de dezembro de 1969.
Posted by
Júlio Barbosa
às
dezembro 20, 2010
0
comentários
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no XCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
História
História.:.DEMOCRACIA E POPULISMO NO BRASIL
DEMOCRACIA E POPULISMO NO BRASIL
Trabalho de graduação apresentado por Flávio Spricigo de Souza à disciplina História da América do 3º ano curso de História da UNIVILLE
Introdução
O presente trabalho analisa os fundamentos do populismo, tendo por referência a esfera política das relações entre o Estado e a sociedade. Busca, entretanto, chegar a uma representação síntese do processo de mudanças estruturais ocorridos na sociedade brasileira entre o primeiro quartel e meados do século XX, dando ênfase às causas e efeitos da inércia psicossocial herdada do período colonial e escravocrata. Estudo um Brasil que se moderniza e se industrializa a partir de estímulos de mercado, mas que permaneceu atrasado do ponto de vista de seu amadurecimento institucional.
A análise inicia-se com o exame do conceito de alienação. Em seguida, entender como os intelectuais, no período imediato ao golpe militar de 1964, se engajam fortemente na questão nacional em detrimento da questão democrática. Nessa altura da análise, reconheço, que o mesmo fenômeno - valorização e busca da identidade nacional em descompasso com a institucionalização da democracia - ocorreu em outros países onde o colonizador europeu esteve presente.
Na América Latina, o populismo dá-se nos governos democráticos e ditatoriais instaurados no período 1950 a 1970. No Brasil, embora me referenciando ao Estado Novo, para efeito desta análise a mesma fase ocorre no período que vai de 1945 a 1964, quando governantes e lideranças buscam legitimidade e retorno eleitoral junto às massas populares.
Embora para o líder populista as classes sociais se agreguem num todo homogêneo que se presta à manipulação, o sucesso do populismo, todavia, associa-se ao baixo nível de institucionalização da sociedade civil brasileira do início e meados do corrente século.
O fenômeno da industrialização que promove a rápida migração do campo para a cidade é, sem dúvida, relevante para explicar a manipulação do operariado e das camadas médias urbanas. Esses contingentes de trabalhadores, em grande parte vindos do interior ou do exterior, tinham dificuldades para organizar ações coletivas de longo alcance, preferindo confiar ao líder populista seus anseios de justiça e progresso social.
O crescimento econômico e as mudanças estruturais da sociedade são avanços importantes dessa época. Os intelectuais, sobretudo os do ISEB, são vistos como pessoas devotadas à causa nacional e muito pouco à causa democrática. A crise institucional que leva à ruptura autoritária de 1964 tem a ver com tudo isso.
A manipulação das massas populares durou enquanto Estado teve condições de responder, embora que com limites, suas demandas. Fracassou quando, esgotada as possibilidades da acumulação capitalista em curso, as reformas estruturais passaram a ser demandadas por um movimento de massas que se insinuava cada vez mais autônomo, radical e fora do controle dos líderes populistas. Essa atmosfera de radicalização chega rapidamente ao Congresso Nacional e, com ela, o impasse institucional que acabaria em golpe militar.
Uma teoria para superar a alienação
As coisas são assim e assim hão de ficar! Parece ser esta a imagem que a maioria dos brasileiros faziam de si e de seu país no início do século XX. Uma imagem calcada na realidade do colonizador que domina e promove a aculturação subalterna. Uma imagem de quem se referencia integralmente nos olhos de alguém que enxerga o colonizado como simples "coisa". Uma imagem que emana de uma auto-estima coletiva rebaixada com o peso dos complexos herdados do longo período colonial e da escravidão. Uma perspectiva que impõe, aos países colonizados, dominação econômica e cultural. A primeira, no plano material, se completa com a segunda pela apropriação do espirito do oprimido pelo opressor.
Era este, portanto, o cenário psicossocial brasileiro no início do século. No correr dos anos, todavia, com as tensões e conflitos provocados com a transição urbano-industrial (IANNI. 1994), essas formas de representação de si mesmo seriam questionadas pela intelectualidade brasileira e logo pelos políticos. Uma nova pergunta resumiria a problemática no campo social, econômico e político: o que sou e por que estou assim? Tratava-se, do colonizado ir em busca de sua verdadeira identidade como forma de seguir novos rumos com vistas a enfrentar os desafios reais de sua existência individual e coletiva. O indivíduo agora era chamado a fazer a sua opção! Um comportamento que nos anos 50 e 60 se generalizaria entre as elites dos chamados povos oprimidos do Terceiro Mundo.
A sistematização filosófica desse comportamento encontrou, nos Intelectuais do mundo periférico — América Latina, Ásia e África, formas de comunicação de massa até então raras. A realidade colonial e neocolonial seria analisada a partir da interação dos fatores subjetivos e objetivos que a compõe. A dominação econômica assente nas relações desiguais das trocas internacionais e a dominação cultural, assente numa visão eurocêntrica do passado, do presente e do futuro da condição humana. No Brasil, essa abordagem encontra sua especificidade na produção intelectual do ISEB orientada de conformidade com as idéias do nacional-desenvolvimentismo:
Para os intelectuais brasileiros vinculados ao ISEB, a transição da filosofia para a política implicava viver e transformar o mundo em que se vive a partir da ótica e dos interesses do oprimido. E transformar, era agora sinônimo de desenvolvimento no contexto de um movimento político que chamaria as massas não para uma ruptura revolucionária, mas, tão somente, para uma ruptura reformista (ORTIZ. 1985:60; IANII. 1994:18)
A participação do povo como ator no teatro político brasileiro, inicia-se a partir de 1922 prolongando-se até 1964. De 1922 a 1945, o fundamento mobilizador é a luta pela redução do poder econômico e político das oligarquias vinculadas ao comércio externo. Um conflito entre os setores tradicionais e os setores urbanos em torno de diferentes projetos de modernização. São lutas políticas relacionadas à necessidade de construir um sistema cultural e institucional adequado às exigências da sociedade urbano-industrial em formação. De 1945 até 1964, uma vez atendidas as condições institucionais e materiais para o desenvolvimento industrial, com a redemocratização do país, viria o proletariado e a classe média serem convocados a figurar no teatro das lutas políticas e sociais, engrossando, assim, um movimento que, sob a designação de populismo, seria o agente propulsor da orientação nacionalista dos governantes e de lideranças políticas nas praças e ruas de todo o Brasil.
Povo e democracia, eis a fórmula do pós-guerra. Democracia populista e crise institucional, o resultado. Experiência importante que duraria até 1964 e, durante todo esse período, refletiria, por meio de uma sucessão de governos e golpes, as contradições de uma sociedade que, embora amadurecida sob a ótica do mercado, continuava atrasada em suas instituições e na maneira de pensar de suas elites. Francisco Weffort, comentando sobre a crescente perspectiva de crise, após análise dos pressupostos do golpe de 1964, reproduz uma frase de Vargas que sintetiza muito bem o descompasso entre as demandas organizadas do povo e a disposição de resposta dos governantes:
"Por força das transformações sociais e econômicas que se associam ao desenvolvimento do capitalismo industrial e que assumem um ritmo mais intenso a partir de 1930, a democracia defronta-se, apenas começa a instaurar-se no após guerra, com a tarefa trágica de toda a democracia burguesa: a incorporação das massas populares ao processo político". Deste modo, podemos crer que Vargas, já em 1950 quando se elege Presidente diretamente pelo voto popular, tocava no ponto essencial em comentário que teria feito sobre a designação de seu Ministério: Governo popular, Ministério reacionário; por muito tempo terá de ser assim. (Weffort.1989: 17)
Eis a fórmula da manipulação que presidiria as relações entre o governo e as classes sociais durante todo o período de vigência da democracia populista de 1945 até 1964.
Democracia, populismo, desenvolvimentismo e crise institucional
A partir de 1946 o Brasil ganhou uma nova Constituição que, no essencial, contemplava os requisitos do que a maioria dos cientistas políticos reconhece como sendo uma democracia clássica no sentido da palavra. Competição política, pluralismo partidário, eleições diretas, separação formal dos poderes do Estado, razoável direito de contestação pública, faziam secundárias as distorções de inércia herdadas do regime anterior, o Estado Novo. Com efeito, a inércia a que nos referimos explica uma transição marcada pela apatia das massas, pelas exigências democratizantes de além fronteira e que, por não haver reciclado a elite do regime anterior, incorrera na sobreposição das novas regras à velha estrutura de poder, mantendo intacto o sistema sindical corporativista e o perfil de uma burocracia estatal concentradora do poder decisório. (Souza.1976:105)
Não bastando a limitação das franquias democráticas, o modelo político de 1945 conseguiu captar a complexidade da sociedade brasileira via sistema partidário. Um partido de trabalhadores (PTB), um partido das camadas médias urbanas e empresariais moderna (UDN) e um terceiro, com penetração no meio rural e na parte menos desenvolvida do país (PSD). A competição política, em que pese tentativas de interrupção da democracia, sobreviveu por vinte anos.
Foi nesse ambiente, de fragilidade do consenso e da democratização, que a intelectualidade brasileira estreou suas lutas, aderindo, voluntariamente, as causas populares. Alguns à esquerda, saíram do liberalismo da UDN para em seguida entrarem, majoritariamente, no Partido Socialista Brasileiro ao tempo em que outro segmento, mais radicalmente comprometido com o socialismo e menos com a democracia, firmava posição dentro do Partido Comunista — declarado ilegal e 1947 e com os parlamentares cassados em 1948. Daniel Pécaut em estudo sobre os intelectuais da geração 1954-1964, analisando esse contexto declara:
"... o ardor democrático dos intelectuais de 1945 tinha poucas chances de durar. Tendo admitido, por cálculo ou impotência, o aspecto corporativista do regime, pouco inclinados aos prazeres da política partidária e, além disso, pouco instrumentados para tomar parte nela, não tinham motivos para celebrar as virtudes da "democracia formal" que de qualquer forma nunca exaltaram assim. " (Pécaut. 1989: 99).
Para essa elite pensante, o aperfeiçoamento democrático em curso era apenas um tema subordinado a questão nacional que agora, diferente do período 1925-1940, estaria definitivamente gravitando em torno do reconhecimento da existência concreta da nação brasileira, do caráter e da personalidade acabadas de seu povo, e do direito inalienável ao progresso econômico e social. Agora não se tratava mais de buscar a identidade do oprimido frente o opressor, mas de mobilizar as massas para o confronto que afirma e defende a soberania nacional indispensável ao desenvolvimento.
Com essa orientação, a intelectualidade tinha a clara percepção de que sua opção, ao privilegiar o mercado interno, contrariava interesses estabelecidos dentro e fora do País, não lhe restando outra escolha que não o apelo às massas urbanas para dar sustentação a um projeto abrangente e politicamente definido. Coube ao ISEB, criado em 1955, produzir esse projeto. (PÉCAUT,1989. BIELSCHOWSKY, 1988). O diagnóstico da realidade brasileira a ser transformada pela ação do planejamento estatal, com o apoio das massas, inspirava-se na contribuição teórica da Cepal. Essa entidade já havia desenvolvido, para toda a América Latina, estudos e conceitos encadeados para dar sustentação teórica a um modelo econômico condizente a proposta de industrialização das economias da região. Conceitos como deterioração dos termos de troca, baixa elasticidade da demanda do exterior por produtos do setor primário; desemprego estrutural; desequilíbrio no balanço de pagamentos; inflação estrutural e vulnerabilidade aos ciclos econômicos — eram interligados num discurso que se espalhou no universo acadêmico e político, sustentando a defesa do planejamento e da industrialização da economia. (BIELSCHOWSKY, 1988:26).
O impulso para a industrialização veio com o retorno de Vargas, em 1950, pelo voto direto. O desejo de autonomia econômica, entretanto, despertaria tensões sociais e protestos junto às classes tradicionalmente ligadas ao comércio de exportação e importação, não tanto pela industrialização em si, mas e principalmente devido a ameaça aos privilégios que chegava com a emergência de uma nova estrutura social. (Skiidmore.1979). Seguem-se os conflitos, tensões e golpes planejados ou abortados, o que não impede a eleição e a posse traumática de Juscelino Kubitschek, com o rótulo do nacional desenvolvimentismo e a promessa de realizar "cinqüenta anos de progresso em cinco".
Desta vez o ISEB — "agora Meca da pesquisa e do ensino de problemas brasileiros" (Skidmore. 1979: 211) — encontra o seu momento, sua hora e a sua vez, para lançar uma série de livros e publicações sobre as causas do subdesenvolvimento e as formas de sua superação. Entrava o Brasil num período de crescimento sem precedentes no século XX para o conjunto dos países capitalistas do Ocidente. A renda per capita brasileira viria sustentar-se ao longo da década de 50 em nível três vezes maior do que o resto da América Latina. A respeito dos anos JK é bom ouvir o que Skidmore tem a dizer sobre o desempenho da economia:
"Entre 1955 e 1961, a produção industrial cresceu 80% (em preços constantes), com as porcentagens mais altas registradas pelas indústrias de aço (100%), indústrias mecânicas (125%), indústrias elétricas e de comunicações (380%) e indústria de equipamentos de transportes (600%). De 1957 a 1961, a taxa de crescimento real foi de 7% ao ano e, aproximadamente, 4% per capita." (Skidmore.1979: 204)
Esse processo de industrialização, uma trajetória que remonta, com já referido, a revolução de 1930 é, na segunda metade dos anos 50 e primeira dos 60, fator primordial das tensões decorrentes do avanço do capitalismo brasileiro e das mudanças na estrutura social. Nos anos 60, a participação da indústria no PIB (26%) quase se equiparou com a agricultura (28%). O país transforma-se de economia agrária exportadora, em agrária industrial com todas as mazelas e demanda acarretada por uma intensa migração do campo para a cidade. Um processo em que brasileiros esquecidos nos lugares mais remotos, chegavam a grande cidade para conhecer novos padrões de consumo, instrução, amparo social limitado, mas também desemprego, miséria, violência e discriminação. Estas são as razões que fazem do populismo um jogo perigoso, um jogo de mão dupla. Se havia interesse do Estado na emergência política das classes populares, esse mesmo Estado sofre, via mercado, as pressões decorrentes desse processo. De um lado precisa das massas trabalhadoras para seu projeto político nacional-desenvolvimentista. Mas de outro, precisa controlar essas massas trabalhadoras de forma a atender a estratégia da acumulação com o aumento da lucratividade e dos níveis de poupança do setor privado. Este conflito encontra em Wefforf uma advertência:
"Seria ingênuo supor que somente para atender as necessidades de seu jogo interno, o Estado tivesse inventado uma nova força social". (Weffort. 1978: 71)
De acordo com Weffort o poder de manipulação do governante e a passividade das massas era um fenômeno social aparente. A incapacidade de representação associada a suposta passividade das massas, contagiava também o grupo dominante que, fragmentado nos seus interesses, não consegue fazer-se representar. Essa é a razão porque a tutela de um Presidente que centraliza o poder e manipula é aceita por oprimidos e opressores. Heterogeneidade de interesses e conflitos inter e intra classes é o resultado desse fenômeno brasileiro que termina por revelar o populismo como uma falsa solução. Trata-se, portanto, de uma ambigüidade das relações classe x governo e classe x classe. São relações individuais infensas a qualquer forma autônoma de organização. Vejamos de novo o que Weffort tem a dizer:
"Desse modo, a manipulação é uma relação ambígua, tanto do ponto de vista social como do ponto de vista político". (Weffort. 1978: 74)
A lógica dos fatos vem comprovar, no entanto, os limites da manipulação populista. Pois enquanto a economia cresceu, houve acumulação e pôde o Estado atender, no interesse dessa mesma acumulação e de sua sustentação política, a demanda dos trabalhadores. Contudo, tão logo se esgota o ciclo de expansão da economia brasileira, essa demanda extrapola a capacidade de atendimento do Estado, abrindo as portas para uma verdadeira mobilização política popular. (Weffort.1978) Com isso, instala-se o conflito que combinado à precária institucionalização da democracia (uma dívida do populismo) converge para o impasse e a ruptura. É o advento dos governos militares e da fase de modernização conservadora quando o país, superados os ajustes da segunda metade dos anos 60, adentra os 70 com um crescimento reconhecidamente acelerado.
Conclusão
O presente estudo atesta a especificidade da construção da cidadania no Brasil. Vimos que as marcas da colonização só foram parcialmente superadas com o advento da industrialização que cria e demanda mão-de-obra excedente do campo. No início essa mão-de-obra, fundamento da formação do proletariado urbano, chega à cidade para ganhar a vida sem voltar as costas para seu local de origem, o interior atrasado e oligárquico. Por isso, durante muito tempo sente-se estranha e pouco representada, incapaz de se organizar para lutar por seus interesses. Esse perfil social, pouco a pouco, com o aprofundamento da industrialização, sobretudo após a II Guerra Mundial, cristaliza e segmenta interesses econômicos de um proletariado e de uma classe média nitidamente urbanos, que não conseguem fazer-se representar na esfera política. Nas classes dominantes, o mesmo fenômeno ocorre em razão da rápida mudança da estrutura produtiva e de classes. Seus interesses também se fragmentam e a perplexidade impede-as de uma representação política consistente.
Como decorrência dessa especificidade histórica, a ação da elite política que capta e opera a transformação, inventa uma forma de poliarquia limitada, a Constituição de 1946, chamada aqui de democracia populista. Esse arranjo institucional expressa seus fundamentos políticos por meio de ações populistas circunscritas a alianças policlassistas, estimulando relações individuais entre as classes, no interior destas, e entre estas e o Estado. É o populismo, um recurso, uma muleta que a meu ver sustenta a falta de legitimidade original do Estado perante o conjunto da sociedade brasileira. Trata-se, portanto, de uma particularidade histórica de um Estado que nasceu antes da nacionalidade. (Carvalho 1980 e 1994) Essas são as razões que explicam o período 1945 a 1964. Esse período expressa todo o potencial de conflito decorrente da inércia da regulação da cidadania patrocinada no período Vargas e que aflora na forma do radicalismo político, da paralisia decisória e da negação das instituições democráticas.
Surpreendentemente, a intelectualidade que poderia ser o contraponto dessa tendência, produzindo um pensamento político capaz de questionar as instituições na perspectiva do aperfeiçoamento, preferiu apostar na questão nacional, mergulhando, de cabeça numa proposta de desenvolvimento econômico e social que terminou, nos meandros das negociações de gabinete, transformando-se em apêndice do populismo.
Bibliografia
BIELSCHOWSKY, R - Pensamento econômico brasileiro: O ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro:Contraponto,1988.
CARVALHO, José Murilo de - A Construção da Ordem: A elite política imperial. Rio de Janeiro:Editora Campus, 1980.
IANNI, O - O colapso do populismo no Brasil. São Paulo:Editora Civilização Brasileira, 1994.
ORTIZ, R - Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo:Ed. brasiliense, 1985.
PÉCAUT, D - Os intelectuais e a política no Brasil: Entre o povo e a nação. São Paulo: Editora Ática, 1989.
SKIDMORE, T - Brasil: de Getúlio a Castelo. São Paulo: Paz e Terra, 1979.
SOUZA, Maria do Carmo Campello – Estado e partidos políticos no Brasil (1930 a 1964). São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1976.
WEFFORT, F - O populismo na política brasileira. São Paulo: Paz e Terra, 1989.
Trabalho de graduação apresentado por Flávio Spricigo de Souza à disciplina História da América do 3º ano curso de História da UNIVILLE
Introdução
O presente trabalho analisa os fundamentos do populismo, tendo por referência a esfera política das relações entre o Estado e a sociedade. Busca, entretanto, chegar a uma representação síntese do processo de mudanças estruturais ocorridos na sociedade brasileira entre o primeiro quartel e meados do século XX, dando ênfase às causas e efeitos da inércia psicossocial herdada do período colonial e escravocrata. Estudo um Brasil que se moderniza e se industrializa a partir de estímulos de mercado, mas que permaneceu atrasado do ponto de vista de seu amadurecimento institucional.
A análise inicia-se com o exame do conceito de alienação. Em seguida, entender como os intelectuais, no período imediato ao golpe militar de 1964, se engajam fortemente na questão nacional em detrimento da questão democrática. Nessa altura da análise, reconheço, que o mesmo fenômeno - valorização e busca da identidade nacional em descompasso com a institucionalização da democracia - ocorreu em outros países onde o colonizador europeu esteve presente.
Na América Latina, o populismo dá-se nos governos democráticos e ditatoriais instaurados no período 1950 a 1970. No Brasil, embora me referenciando ao Estado Novo, para efeito desta análise a mesma fase ocorre no período que vai de 1945 a 1964, quando governantes e lideranças buscam legitimidade e retorno eleitoral junto às massas populares.
Embora para o líder populista as classes sociais se agreguem num todo homogêneo que se presta à manipulação, o sucesso do populismo, todavia, associa-se ao baixo nível de institucionalização da sociedade civil brasileira do início e meados do corrente século.
O fenômeno da industrialização que promove a rápida migração do campo para a cidade é, sem dúvida, relevante para explicar a manipulação do operariado e das camadas médias urbanas. Esses contingentes de trabalhadores, em grande parte vindos do interior ou do exterior, tinham dificuldades para organizar ações coletivas de longo alcance, preferindo confiar ao líder populista seus anseios de justiça e progresso social.
O crescimento econômico e as mudanças estruturais da sociedade são avanços importantes dessa época. Os intelectuais, sobretudo os do ISEB, são vistos como pessoas devotadas à causa nacional e muito pouco à causa democrática. A crise institucional que leva à ruptura autoritária de 1964 tem a ver com tudo isso.
A manipulação das massas populares durou enquanto Estado teve condições de responder, embora que com limites, suas demandas. Fracassou quando, esgotada as possibilidades da acumulação capitalista em curso, as reformas estruturais passaram a ser demandadas por um movimento de massas que se insinuava cada vez mais autônomo, radical e fora do controle dos líderes populistas. Essa atmosfera de radicalização chega rapidamente ao Congresso Nacional e, com ela, o impasse institucional que acabaria em golpe militar.
Uma teoria para superar a alienação
As coisas são assim e assim hão de ficar! Parece ser esta a imagem que a maioria dos brasileiros faziam de si e de seu país no início do século XX. Uma imagem calcada na realidade do colonizador que domina e promove a aculturação subalterna. Uma imagem de quem se referencia integralmente nos olhos de alguém que enxerga o colonizado como simples "coisa". Uma imagem que emana de uma auto-estima coletiva rebaixada com o peso dos complexos herdados do longo período colonial e da escravidão. Uma perspectiva que impõe, aos países colonizados, dominação econômica e cultural. A primeira, no plano material, se completa com a segunda pela apropriação do espirito do oprimido pelo opressor.
Era este, portanto, o cenário psicossocial brasileiro no início do século. No correr dos anos, todavia, com as tensões e conflitos provocados com a transição urbano-industrial (IANNI. 1994), essas formas de representação de si mesmo seriam questionadas pela intelectualidade brasileira e logo pelos políticos. Uma nova pergunta resumiria a problemática no campo social, econômico e político: o que sou e por que estou assim? Tratava-se, do colonizado ir em busca de sua verdadeira identidade como forma de seguir novos rumos com vistas a enfrentar os desafios reais de sua existência individual e coletiva. O indivíduo agora era chamado a fazer a sua opção! Um comportamento que nos anos 50 e 60 se generalizaria entre as elites dos chamados povos oprimidos do Terceiro Mundo.
A sistematização filosófica desse comportamento encontrou, nos Intelectuais do mundo periférico — América Latina, Ásia e África, formas de comunicação de massa até então raras. A realidade colonial e neocolonial seria analisada a partir da interação dos fatores subjetivos e objetivos que a compõe. A dominação econômica assente nas relações desiguais das trocas internacionais e a dominação cultural, assente numa visão eurocêntrica do passado, do presente e do futuro da condição humana. No Brasil, essa abordagem encontra sua especificidade na produção intelectual do ISEB orientada de conformidade com as idéias do nacional-desenvolvimentismo:
Para os intelectuais brasileiros vinculados ao ISEB, a transição da filosofia para a política implicava viver e transformar o mundo em que se vive a partir da ótica e dos interesses do oprimido. E transformar, era agora sinônimo de desenvolvimento no contexto de um movimento político que chamaria as massas não para uma ruptura revolucionária, mas, tão somente, para uma ruptura reformista (ORTIZ. 1985:60; IANII. 1994:18)
A participação do povo como ator no teatro político brasileiro, inicia-se a partir de 1922 prolongando-se até 1964. De 1922 a 1945, o fundamento mobilizador é a luta pela redução do poder econômico e político das oligarquias vinculadas ao comércio externo. Um conflito entre os setores tradicionais e os setores urbanos em torno de diferentes projetos de modernização. São lutas políticas relacionadas à necessidade de construir um sistema cultural e institucional adequado às exigências da sociedade urbano-industrial em formação. De 1945 até 1964, uma vez atendidas as condições institucionais e materiais para o desenvolvimento industrial, com a redemocratização do país, viria o proletariado e a classe média serem convocados a figurar no teatro das lutas políticas e sociais, engrossando, assim, um movimento que, sob a designação de populismo, seria o agente propulsor da orientação nacionalista dos governantes e de lideranças políticas nas praças e ruas de todo o Brasil.
Povo e democracia, eis a fórmula do pós-guerra. Democracia populista e crise institucional, o resultado. Experiência importante que duraria até 1964 e, durante todo esse período, refletiria, por meio de uma sucessão de governos e golpes, as contradições de uma sociedade que, embora amadurecida sob a ótica do mercado, continuava atrasada em suas instituições e na maneira de pensar de suas elites. Francisco Weffort, comentando sobre a crescente perspectiva de crise, após análise dos pressupostos do golpe de 1964, reproduz uma frase de Vargas que sintetiza muito bem o descompasso entre as demandas organizadas do povo e a disposição de resposta dos governantes:
"Por força das transformações sociais e econômicas que se associam ao desenvolvimento do capitalismo industrial e que assumem um ritmo mais intenso a partir de 1930, a democracia defronta-se, apenas começa a instaurar-se no após guerra, com a tarefa trágica de toda a democracia burguesa: a incorporação das massas populares ao processo político". Deste modo, podemos crer que Vargas, já em 1950 quando se elege Presidente diretamente pelo voto popular, tocava no ponto essencial em comentário que teria feito sobre a designação de seu Ministério: Governo popular, Ministério reacionário; por muito tempo terá de ser assim. (Weffort.1989: 17)
Eis a fórmula da manipulação que presidiria as relações entre o governo e as classes sociais durante todo o período de vigência da democracia populista de 1945 até 1964.
Democracia, populismo, desenvolvimentismo e crise institucional
A partir de 1946 o Brasil ganhou uma nova Constituição que, no essencial, contemplava os requisitos do que a maioria dos cientistas políticos reconhece como sendo uma democracia clássica no sentido da palavra. Competição política, pluralismo partidário, eleições diretas, separação formal dos poderes do Estado, razoável direito de contestação pública, faziam secundárias as distorções de inércia herdadas do regime anterior, o Estado Novo. Com efeito, a inércia a que nos referimos explica uma transição marcada pela apatia das massas, pelas exigências democratizantes de além fronteira e que, por não haver reciclado a elite do regime anterior, incorrera na sobreposição das novas regras à velha estrutura de poder, mantendo intacto o sistema sindical corporativista e o perfil de uma burocracia estatal concentradora do poder decisório. (Souza.1976:105)
Não bastando a limitação das franquias democráticas, o modelo político de 1945 conseguiu captar a complexidade da sociedade brasileira via sistema partidário. Um partido de trabalhadores (PTB), um partido das camadas médias urbanas e empresariais moderna (UDN) e um terceiro, com penetração no meio rural e na parte menos desenvolvida do país (PSD). A competição política, em que pese tentativas de interrupção da democracia, sobreviveu por vinte anos.
Foi nesse ambiente, de fragilidade do consenso e da democratização, que a intelectualidade brasileira estreou suas lutas, aderindo, voluntariamente, as causas populares. Alguns à esquerda, saíram do liberalismo da UDN para em seguida entrarem, majoritariamente, no Partido Socialista Brasileiro ao tempo em que outro segmento, mais radicalmente comprometido com o socialismo e menos com a democracia, firmava posição dentro do Partido Comunista — declarado ilegal e 1947 e com os parlamentares cassados em 1948. Daniel Pécaut em estudo sobre os intelectuais da geração 1954-1964, analisando esse contexto declara:
"... o ardor democrático dos intelectuais de 1945 tinha poucas chances de durar. Tendo admitido, por cálculo ou impotência, o aspecto corporativista do regime, pouco inclinados aos prazeres da política partidária e, além disso, pouco instrumentados para tomar parte nela, não tinham motivos para celebrar as virtudes da "democracia formal" que de qualquer forma nunca exaltaram assim. " (Pécaut. 1989: 99).
Para essa elite pensante, o aperfeiçoamento democrático em curso era apenas um tema subordinado a questão nacional que agora, diferente do período 1925-1940, estaria definitivamente gravitando em torno do reconhecimento da existência concreta da nação brasileira, do caráter e da personalidade acabadas de seu povo, e do direito inalienável ao progresso econômico e social. Agora não se tratava mais de buscar a identidade do oprimido frente o opressor, mas de mobilizar as massas para o confronto que afirma e defende a soberania nacional indispensável ao desenvolvimento.
Com essa orientação, a intelectualidade tinha a clara percepção de que sua opção, ao privilegiar o mercado interno, contrariava interesses estabelecidos dentro e fora do País, não lhe restando outra escolha que não o apelo às massas urbanas para dar sustentação a um projeto abrangente e politicamente definido. Coube ao ISEB, criado em 1955, produzir esse projeto. (PÉCAUT,1989. BIELSCHOWSKY, 1988). O diagnóstico da realidade brasileira a ser transformada pela ação do planejamento estatal, com o apoio das massas, inspirava-se na contribuição teórica da Cepal. Essa entidade já havia desenvolvido, para toda a América Latina, estudos e conceitos encadeados para dar sustentação teórica a um modelo econômico condizente a proposta de industrialização das economias da região. Conceitos como deterioração dos termos de troca, baixa elasticidade da demanda do exterior por produtos do setor primário; desemprego estrutural; desequilíbrio no balanço de pagamentos; inflação estrutural e vulnerabilidade aos ciclos econômicos — eram interligados num discurso que se espalhou no universo acadêmico e político, sustentando a defesa do planejamento e da industrialização da economia. (BIELSCHOWSKY, 1988:26).
O impulso para a industrialização veio com o retorno de Vargas, em 1950, pelo voto direto. O desejo de autonomia econômica, entretanto, despertaria tensões sociais e protestos junto às classes tradicionalmente ligadas ao comércio de exportação e importação, não tanto pela industrialização em si, mas e principalmente devido a ameaça aos privilégios que chegava com a emergência de uma nova estrutura social. (Skiidmore.1979). Seguem-se os conflitos, tensões e golpes planejados ou abortados, o que não impede a eleição e a posse traumática de Juscelino Kubitschek, com o rótulo do nacional desenvolvimentismo e a promessa de realizar "cinqüenta anos de progresso em cinco".
Desta vez o ISEB — "agora Meca da pesquisa e do ensino de problemas brasileiros" (Skidmore. 1979: 211) — encontra o seu momento, sua hora e a sua vez, para lançar uma série de livros e publicações sobre as causas do subdesenvolvimento e as formas de sua superação. Entrava o Brasil num período de crescimento sem precedentes no século XX para o conjunto dos países capitalistas do Ocidente. A renda per capita brasileira viria sustentar-se ao longo da década de 50 em nível três vezes maior do que o resto da América Latina. A respeito dos anos JK é bom ouvir o que Skidmore tem a dizer sobre o desempenho da economia:
"Entre 1955 e 1961, a produção industrial cresceu 80% (em preços constantes), com as porcentagens mais altas registradas pelas indústrias de aço (100%), indústrias mecânicas (125%), indústrias elétricas e de comunicações (380%) e indústria de equipamentos de transportes (600%). De 1957 a 1961, a taxa de crescimento real foi de 7% ao ano e, aproximadamente, 4% per capita." (Skidmore.1979: 204)
Esse processo de industrialização, uma trajetória que remonta, com já referido, a revolução de 1930 é, na segunda metade dos anos 50 e primeira dos 60, fator primordial das tensões decorrentes do avanço do capitalismo brasileiro e das mudanças na estrutura social. Nos anos 60, a participação da indústria no PIB (26%) quase se equiparou com a agricultura (28%). O país transforma-se de economia agrária exportadora, em agrária industrial com todas as mazelas e demanda acarretada por uma intensa migração do campo para a cidade. Um processo em que brasileiros esquecidos nos lugares mais remotos, chegavam a grande cidade para conhecer novos padrões de consumo, instrução, amparo social limitado, mas também desemprego, miséria, violência e discriminação. Estas são as razões que fazem do populismo um jogo perigoso, um jogo de mão dupla. Se havia interesse do Estado na emergência política das classes populares, esse mesmo Estado sofre, via mercado, as pressões decorrentes desse processo. De um lado precisa das massas trabalhadoras para seu projeto político nacional-desenvolvimentista. Mas de outro, precisa controlar essas massas trabalhadoras de forma a atender a estratégia da acumulação com o aumento da lucratividade e dos níveis de poupança do setor privado. Este conflito encontra em Wefforf uma advertência:
"Seria ingênuo supor que somente para atender as necessidades de seu jogo interno, o Estado tivesse inventado uma nova força social". (Weffort. 1978: 71)
De acordo com Weffort o poder de manipulação do governante e a passividade das massas era um fenômeno social aparente. A incapacidade de representação associada a suposta passividade das massas, contagiava também o grupo dominante que, fragmentado nos seus interesses, não consegue fazer-se representar. Essa é a razão porque a tutela de um Presidente que centraliza o poder e manipula é aceita por oprimidos e opressores. Heterogeneidade de interesses e conflitos inter e intra classes é o resultado desse fenômeno brasileiro que termina por revelar o populismo como uma falsa solução. Trata-se, portanto, de uma ambigüidade das relações classe x governo e classe x classe. São relações individuais infensas a qualquer forma autônoma de organização. Vejamos de novo o que Weffort tem a dizer:
"Desse modo, a manipulação é uma relação ambígua, tanto do ponto de vista social como do ponto de vista político". (Weffort. 1978: 74)
A lógica dos fatos vem comprovar, no entanto, os limites da manipulação populista. Pois enquanto a economia cresceu, houve acumulação e pôde o Estado atender, no interesse dessa mesma acumulação e de sua sustentação política, a demanda dos trabalhadores. Contudo, tão logo se esgota o ciclo de expansão da economia brasileira, essa demanda extrapola a capacidade de atendimento do Estado, abrindo as portas para uma verdadeira mobilização política popular. (Weffort.1978) Com isso, instala-se o conflito que combinado à precária institucionalização da democracia (uma dívida do populismo) converge para o impasse e a ruptura. É o advento dos governos militares e da fase de modernização conservadora quando o país, superados os ajustes da segunda metade dos anos 60, adentra os 70 com um crescimento reconhecidamente acelerado.
Conclusão
O presente estudo atesta a especificidade da construção da cidadania no Brasil. Vimos que as marcas da colonização só foram parcialmente superadas com o advento da industrialização que cria e demanda mão-de-obra excedente do campo. No início essa mão-de-obra, fundamento da formação do proletariado urbano, chega à cidade para ganhar a vida sem voltar as costas para seu local de origem, o interior atrasado e oligárquico. Por isso, durante muito tempo sente-se estranha e pouco representada, incapaz de se organizar para lutar por seus interesses. Esse perfil social, pouco a pouco, com o aprofundamento da industrialização, sobretudo após a II Guerra Mundial, cristaliza e segmenta interesses econômicos de um proletariado e de uma classe média nitidamente urbanos, que não conseguem fazer-se representar na esfera política. Nas classes dominantes, o mesmo fenômeno ocorre em razão da rápida mudança da estrutura produtiva e de classes. Seus interesses também se fragmentam e a perplexidade impede-as de uma representação política consistente.
Como decorrência dessa especificidade histórica, a ação da elite política que capta e opera a transformação, inventa uma forma de poliarquia limitada, a Constituição de 1946, chamada aqui de democracia populista. Esse arranjo institucional expressa seus fundamentos políticos por meio de ações populistas circunscritas a alianças policlassistas, estimulando relações individuais entre as classes, no interior destas, e entre estas e o Estado. É o populismo, um recurso, uma muleta que a meu ver sustenta a falta de legitimidade original do Estado perante o conjunto da sociedade brasileira. Trata-se, portanto, de uma particularidade histórica de um Estado que nasceu antes da nacionalidade. (Carvalho 1980 e 1994) Essas são as razões que explicam o período 1945 a 1964. Esse período expressa todo o potencial de conflito decorrente da inércia da regulação da cidadania patrocinada no período Vargas e que aflora na forma do radicalismo político, da paralisia decisória e da negação das instituições democráticas.
Surpreendentemente, a intelectualidade que poderia ser o contraponto dessa tendência, produzindo um pensamento político capaz de questionar as instituições na perspectiva do aperfeiçoamento, preferiu apostar na questão nacional, mergulhando, de cabeça numa proposta de desenvolvimento econômico e social que terminou, nos meandros das negociações de gabinete, transformando-se em apêndice do populismo.
Bibliografia
BIELSCHOWSKY, R - Pensamento econômico brasileiro: O ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro:Contraponto,1988.
CARVALHO, José Murilo de - A Construção da Ordem: A elite política imperial. Rio de Janeiro:Editora Campus, 1980.
IANNI, O - O colapso do populismo no Brasil. São Paulo:Editora Civilização Brasileira, 1994.
ORTIZ, R - Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo:Ed. brasiliense, 1985.
PÉCAUT, D - Os intelectuais e a política no Brasil: Entre o povo e a nação. São Paulo: Editora Ática, 1989.
SKIDMORE, T - Brasil: de Getúlio a Castelo. São Paulo: Paz e Terra, 1979.
SOUZA, Maria do Carmo Campello – Estado e partidos políticos no Brasil (1930 a 1964). São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1976.
WEFFORT, F - O populismo na política brasileira. São Paulo: Paz e Terra, 1989.
Posted by
Júlio Barbosa
às
dezembro 20, 2010
0
comentários
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no XCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
História
Assinar:
Postagens (Atom)