Singularidade da Tecnologia e Inovação Conservadora
Embora estejamos longe do uso continuado das TI na maioria das disciplinas e das escolas públicas, pela primeira vez a tecnologia possibilita ampliação das capacidades do aluno, no trabalho com conteúdos escolares, transformando - selecionando, ampliando, reduzindo - a experiência pessoal e de grupo envolvendo textos, números, imagens, sons; acesso remoto à informação, comunicação, registro; relações entre professor e aluno. Isto de modo concomitante ou não com a ampliação de capacidades análogas do professor e de administradores de sistemas educacionais nos seus vários níveis. Utilizando a expressão de Papert (1985), neste sentido o computador pessoal é o Proteu das máquinas, ao assumir inúmeras formas e atender a inúmeros gostos, adaptando-se a condições e situações as mais diversas.
Que aspectos da experiência humana da escola e do ato de educar, nos conteúdos das várias disciplinas e séries merecem e podem ser transformados, ampliados ou reduzidos com a Informática e a Telemática? Quais as implicações das reduções que inexoravelmente ocorrerão, uma vez passado o caráter dramático inicial? Tais perguntas não são fáceis de responder, mas podem servir de guias genéricos para a reflexão e a experimentação em situações do cotidiano da escola, onde o professor e o administrador não dispõem do apoio confortável e protetor do conhecimento acumulado e da experiência pessoal ou institucional.
Perkins e outros (1995) usam a expressão "alvos de dificuldade" referindo-se a assuntos e tópicos que apresentam dificuldades de ensino e de aprendizagem, principalmente em matemática e em ciências, que podem representar formidáveis obstáculos para aprendizes e deixam intrigados muitos professores. Os autores citam como exemplos a geometria euclidiana, a distinção entre calor e temperatura, a semântica de frações (p.xv). Baseadas na boa pedagogia, no conhecimento de como os aprendizes compreendem tais problemas e na pesquisa com software específicos (e não no "efeito do computador") as novas tecnologias podem contribuir para mudar tal situação.
Algumas projetos experimentais, desenvolvidos por escolas e redes públicas e por empresas particulares, apontam para possibilidades interessantes. Tem sido feitos estudos de temas específicos, por alunos e professores de um número maior ou menor de escolas, ligadas pela Internet, com o apoio e o acompanhamento de especialistas nos temas explorados. Em Recife, por exemplo, foi feito, durante todo um ano letivo, o estudo multidisciplinar do período holandês em Pernambuco, envolvendo escolas particulares e duas escolas públicas (ARS Consult, 1995). A rede Kidlink, ligando adolescentes e professores de todo o mundo, tem sido usada nas escolas para o estudo dos temas mais diversos (Lucena, 1997).
Mais de uma década de pesquisas em escolas e redes públicas brasileiras, do Rio Grande do Sul ao Pará, tem demonstrado que a atividade pedagógica com computadores pode contribuir para melhoria do ensino, atingindo outros aspectos da escola (e.g. Fagundes & Mosca, 1985; Axt, 1996). Em uma escola pública da cidade do Recife (Cysneiros & Urt, (1995) verificaram que, para determinados alunos e alunas, três horas semanais de atividades com computadores pode ter qualitativamente mais impacto para a aprendizagem de determinados conteúdos do que períodos de tempo maiores na situação precária de sala de aula comum. Se alunos e alunas das redes públicas ainda não tem uma escola semelhante àquela freqüentada pelos filhos e filhas da elite, pelo menos que tenham ambientes - neste caso com computadores - que proporcionem acesso a contextos educativos da melhor qualidade. Para alguns professores também foi constatado que a atividade exploratória com computadores, algo diferente do trabalho de sala de aula comum, pode apontar alternativas inovadoras (na pesquisa citada, professores de Português, História e Matemática).
Um aspecto que merece tratamento à parte é a possibilidade de inovação (ou modernização) conservadora de uma determinada atividade, pelo uso da tecnologia. Em nossas escolas públicas, carentes de recursos, uma ferramenta cara como o computador não deveria ser utilizada para realizar apenas tarefas que possam ser feitas, de modo satisfatório, por ferramentas mais simples (gravadores, retroprojetores, copiadoras, livros, até mesmo lápis e papel). Usos do computador que não mexem qualitativamente com a rotina da escola, do professor e do aluno, além de não explorarem os recursos únicos do computador, aparentam mudança substantivas, quando na realidade apenas muda-se a aparência.
Um exemplo corriqueiro é a simples digitação de trabalhos escolares convencionais, fora da sala de aula e sem a orientação do professor. Neste caso, a tecnologia pode até mesmo facilitar ou dissimular a cópia plagiadora de pedaços de enciclopédias, de livros de texto e de materiais gráficos escaneados, impressionando professores sem experiência de computadores, pelo aspecto gráfico esmerado dos trabalhos e pela extensão do texto (em alguns casos feita por outra pessoa, algo mais difícil de ocorrer quando o professor conhece a caligrafia do aprendiz).
Outro exemplo trivial é a confecção de faixas e cartazes por programas monótonos de computadores (antes, em formulário contínuo; atualmente, com impressoras coloridas que consomem caros cartuchos descartáveis de tinta). Tais materiais podem ser bem mais baratos, bonitos e criativos quando confeccionados com os velhos pincéis e papéis coloridos, por pessoas talentosas da escola (sem excluir, obviamente, o uso ocasional de tais programas gráficos).
Voltando ao ensino e a aprendizagem, os usos educativos das TI na última década - instrução assistida por computador (CAI), informações em rede, aprendizado à distância - foram embasados em métodos pedagógicos tradicionais: fluxo unidirecional de informações, tipicamente um professor transmitido pela TV ou computadores "passando" informações a alunas e alunos passivos (Byte, 1995).
Alguns professores experientes percebem que quase nada mudou, porém outros, talvez iludidos por um suposto efeito do computador, vêm vantagens nas novas formas de apresentar o conteúdo (aspecto dramático), reforçadas por concepções tradicionais de ensino e de aprendizagem (apesar de um discurso defendendo o Construtivismo ou outros conceitos da moda, pouco ou mal-compreendidos). Os alunos também cansam-se facilmente após o efeito da novidade.
Um excelente exemplo de modernização conservadora encontra-se em um belo livro de Asimov (1986), com uma série de cartões produzidos por um desenhista francês no final do século passado, imaginando o que seria a sociedade do ano dois mil. Um dos desenhos representa uma escola deste final de século, com alunos sentados em fileiras com fones de ouvido, recebendo passivamente o conteúdo de livros que estão sendo "moídos" por um ajudante do professor.
Outra distorção, associada ao conceito de modernização conservadora é o que Salomon & Perkins (1996) chamam de Justificativa (rationale) do Monte Everest ("Porque está lá"), ou seja, a tecnologia está em todo canto e é preciso usá-la no maior número possível de disciplinas e de conteúdos. Assim, observamos a tendência a se dar aulas expositivas com projetores de vídeo, onde a tecnologia não acrescenta nada além de cores, letras bonitas e outros aspectos epidérmicos, que podem até distrair a audiência, mas não enriquecem qualitativamente a exposição.
Uma vez passado o efeito dramático dos primeiros anos do uso de computadores na educação, duas coisas são amplamente reconhecidas na comunidade acadêmica: primeiro, computadores em si não afetam muito a aprendizagem. A presença pura e simples da tecnologia na escola, mesmo com bons software, não estimula os professores a repensarem seus modos de ensinar nem os alunos a adotarem novos modos de aprender. Como ocorre em outras áreas da atividade humana, professores e alunos precisam aprender a tirar vantagens das TI. Costumo dizer que um bisturi a laser não transforma o médico em um bom cirurgião, embora um bom cirurgião possa fazer muito mais se dispuser da melhor tecnologia médica, em contextos apropriados.
Segundo, o ambiente de aprendizagem como um todo, com ou sem computadores, é o fator mais importante. Neste sentido, é mais relevante nossa compreensão da cognição humana, daquilo que é necessário para se aprender algo por determinados sujeitos em determinados contextos. O importante não é o que a tecnologia pode acrescentar, mas o que as pessoas podem fazer com ou sem tecnologias.
Não há sentido em se colocar tecnologia de ponta na escola em um processo de inovação conservadora, sem a preparação e o envolvimento da escola como um todo. Isto parece ter ocorrido em países onde órgãos centrais resolveram fazer implantações apressadas de projetos grandiosos. Analogamente, tapetes ou condicionadores de ar colocados em celas não mudarão a natureza das prisões.
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